Vem de longe o sectarismo de parcela da esquerda brasileira. Em diversas passagens da nossa história, confundiu quem era o inimigo a ser batido, fazendo o jogo de quem verdadeiramente ameaçava a democracia. Antes dos anos de chumbo, preferiu combater a conciliação de João Goulart em vez de somar forças em torno da candidatura de Juscelino Kubitschek e assim evitar o golpe militar de 1964.
Essa mesma esquerda dizia que a Arena e o MDB eram farinha do mesmo saco. Não votou em Tancredo Neves no colégio eleitoral, em 1984, sob o pretexto de não participar da “farsa eleitoral”. Na verdade, confiou no patriotismo dos liberais e dos democratas, com os quais foi possível o país superar a ditadura e elaborar a Constituição mais avançada de sua História. Que aliás, a tal esquerda se recusou a assinar.
Auto-referente, jamais aceitou alianças cuja hegemonia não fosse dela própria. Fez oposição sem quartel ao governo de Fernando Henrique Cardoso, opondo-se ao Plano Real, que acusava de ser neoliberal. Chegou ao cúmulo de se opor ao Fundef, ao Enem e a programas de transferências de renda, como o Bolsa-Escola, acusado de “assistencialista”.
Quando chegou ao poder, deu o dito por não dito. Adotou, no primeiro governo de Lula, a mesma política econômica de Fernando Henrique e ampliou os programas sociais, mudando a denominação. Do ventre desse grupo nasceu o “nós contra eles” e a “herança maldita”, que desgraçadamente se espraiaram na política brasileira e nos levou ao governo de Jair Bolsonaro.
O uso do cachimbo do sectarismo deixou essa esquerda com a boca torta e a considerar como direita tudo o que não é espelho.
Não é de se estranhar, portanto, que tenha espalhado nas redes sociais sua bile por causa do “Manifesto pela Consciência Democrática”, assinado por seis presidenciáveis do chamado pólo democrático. Em especial, vociferaram contra Ciro Gomes, tido como traidor desde a sua recusa em apoiar o candidato do PT no segundo turno de 2018.
O próprio Fernando Haddad se encarregou de desclassificar Ciro ao compartilhar uma postagem do também petista Breno Altman, segundo a qual ao assinar o manifesto “Ciro Gomes conclui sua ruptura com o campo progressista”. Isso faz lembrar uma passagem da política pernambucana. Quando a esquerda fazia aliança com Cid Sampaio o chamava de empresário progressista, e quando estava em lado oposto acusava Cid de usineiro, latifundiário e reacionário.
O coro contra o manifesto foi engrossado por Lula e Gleisi Hoffman, ambos ressaltando que cinco dos signatários – os governadores João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS), o ex-ministro Luiz Mandetta e os empresários João Amoêdo e Luciano Huck – votaram em Bolsonaro no segundo turno, enquanto Ciro viajou para Paris para não votar em Haddad. Para os petistas, eles seriam os responsáveis pela vitória do atual presidente.
O desastre dos anos Dilma, a corrupção na Petrobras, o aparelhamento do estado pelo PT não teriam nada a ver com a vitória de Bolsonaro, nessa versão fantasiosa.
A deslegitimação do manifesto, sob o pretexto de um pecado original de seus autores, é amplificada por articulistas cujas teclas não escamoteiam seu viés ideológico. Segundo esses escribas os seis presenciáveis não teriam moral para falar em democracia por causa de seu posicionamento em 2018.
Pela métrica do pecado original, Ulysses Guimarães jamais deveria ter liderado a frente democrática responsável pelo fim da ditadura porque apoiou o golpe de 1964. Da mesma maneira figuras como Teotônio Vilela, Severo Gomes ou José Sarney, não teriam legitimidade para empunhar a bandeira da democracia porque em algum momento de suas vidas apoiaram ou participaram de governos do regime militar.
É preciso fazer um registro, para não cair no mesmo erro do sectarismo. É injusto qualificar toda a esquerda como sectária. Neste escopo não se enquadram políticos como Flávio Dino, governador do Maranhão, ou Marcelo Freixo, duas vozes que consideraram o manifesto positivo e legítimo. Por ora, são exceções. O próprio Freixo sofre na pele o estigma de seus companheiros de partido, por defender uma frente no Rio de Janeiro que vá da esquerda a Eduardo Paes, PSDB e Rodrigo Maia, tudo para derrotar o bolsonarismo no seu bunker principal.
Na verdade a esquerda lulista e o próprio caudilho não são contrários a toda e qualquer frente ampla, mas apenas àquelas sobre as quais não tenham a hegemonia. Como a articulação do pólo democrático fugiu do controle, Lula e os seus juntaram suas vozes à dos bolsonaristas contra os autores do manifesto.
Se nada garante que os seis presidenciáveis se unirão em 2022 fica uma pergunta: por que tanto medo do centro democrático?
Como diz o ditado, não se chuta cachorro morto. O lulismo percebeu que as placas tectônicas se moveram com o manifesto, abrindo a possibilidade de quebrar, em 2022, a polarização Lula-Bolsonaro. Ao ex interessa a reedição da polarização na qual ele seja a expressão do bem e o presidente a do mal. Em tais condições, no segundo turno seria só correr para o abraço. pois, para evitar o mal maior, todo o centro embarcaria na sua candidatura no segundo turno.
Só que o filme pode não terminar de acordo com roteiro traçado. Em 2018 o Partido dos Trabalhadores poupou Bolsonaro em todo o primeiro turno, na crença de que pela força da inércia todos estariam com Haddad na segunda rodada. Isso pode se repetir em 2022, sobretudo porque o petismo está, desde já, implodindo pontes para a próxima sucessão presidencial.
Seria mais prudente adotar uma política de boa vizinhança entre o centro e a esquerda mirando para o futuro. Mas as viseiras do hegemonismo impedem a esquerda sectária de olhar para os lados.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 7/4/2021.