Missão macabra

A idéia central da extrema direita que nos desgoverna é clara como seria a água que está faltando nas nossas barragens. Foi anunciada com todas as letras durante a campanha eleitoral de 2018. A ideia é destruir as bases jurídicas da democracia, o arcabouço que chamamos Estado de Direito, sem o qual as democracias não têm como subsistir.

Daí a hostilidade sem fim ao Judiciário, que é o guardião do Estado de Direito e de todas as conquistas constitucionais implantadas após a ditadura militar de 1964-1985, entre as quais se destacam o direito à vida, os direitos humanos, os direitos das minorias, o direito à saúde, o direito ambiental.

Por isso o atual ocupante da cadeira presidencial exalta o direito à liberdade como direito maior que o da própria vida. Trata-se de uma aberração, com a qual ele quer menosprezar o direito à vida e sobrevalorizar o direito à liberdade, do qual deriva – mas que se trata apenas da liberdade de atacar a democracia até destruí-la por completo, de mentir e difamar sem ser punido por isso, até que a mentira pareça verdade e a difamação surta o efeito desejado na reputação de quem ousa defender a vida e a verdadeira liberdade.

Outro ingrediente, este inesperado, para atacar o Judiciário surgiu quando o Ministério Público do Rio de Janeiro denunciou à Justiça o esquema de peculato e lavagem de dinheiro na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro envolvendo figuras pra lá de conhecidas dos cariocas, entre elas o filho mais velho do presidente eleito, o tal 01. Tempos depois, descobriu-se também que papai fazia a mesma coisa em seu gabinete de deputado federal por anos e anos a fio. Finalmente, o Ministério Público descobriu que o tal 03 também era praticante da mesma maracutaia em seu gabinete de vereador da Cidade Maravilhosa. Não se sabe se o 02 ficava só olhando. Mas com três entre quatro já é o bastante para se enquadrar a famiglia no crime de formação de quadrilha.

É o que temos, curto e grosso, na mais alta cúpula da política nacional. Um bando disposto a inaugurar por aqui um mix de ditadura parlamentar com cleptomania familiar. Já vimos esse filme em republiquetas de bananas mil na América Latina e na África, para ficar por aí. A pedra no sapato foi o vírus, que veio atrapalhar os planos da famiglia e seus agregados no governo federal. O vírus ia parar a economia, levar o país ao buraco. Era preciso destruí-lo como se mata barata. Cloroquina nele, com ivermectina e ozônio retal ou nasal, qualquer que fosse o orifício. Mas isso é refresco para o bicho, que deveria matar somente umas 6 mil pessoas, no máximo. Já estamos com 600 mil mortes e isso não estava no script. Daí, pau na imprensa, pau na ciência, pau nos infectologistas, pau na OMS, pau na ONU, pau na China e no seu embaixador.

Só não sei por que tanto pau nas vacinas, porque elas reduziriam o número de mortes e isso seria muito bom para os planos. Mas eu me arrisco a dizer que o coquetel de cloroquina e ivermectina receitado em massa aos 200 milhões de brasileiros e brasileiras para fazerem tratamento preventivo/precoce, empanturrando-se dessas drogas até a raiz dos cabelos, daria uma montanha de dinheiro maior do que a propina de 1 dólar por vacina. Até porque a vacina seria só uma vez ou duas, três se tanto, ao ano, e o coquetel o sujeito poderia tomar à vontade, todas as noites, no recesso do lar, entre uma dose e outra do uisquinho preferido.

A CPI da Covid está investigando e isso é outro motivo para as hostes desancarem a política, os senadores, especialmente aqueles que têm faro de perdigueiros. No entanto, pelo que tenho visto na CPI a guarda governista não tem mais culhões, no sentido lusitano da palavra, que não é um palavrão em Portugal, para defender o indefensável e jogou a toalha. Se antes rugiam como leões cheios de ameaças, hoje miam como gatos roucos e sem fôlego. O do Rio Grande do Sul (não vou me dar o trabalho de procurar o nome) é de dar risadas pelo ridículo, parecendo esquete de televisão à moda antiga. Sinto por Dias Gomes não estar mais entre nós para escrever nova versão, revista e ampliada, de Odorico Paraguaçu e das Cajaseiras, em O Bem Amado. Aquilo sim era arte!

O pau nas máscaras faz parte do espetáculo, pois o seu uso sugere, na cabeça deformada deles, que há medo, insegurança e autodefesa diante do vírus, que deve ser atacado de peito aberto pelos valentões porque bichinho nenhum e de tamanho invisível pode acabar com o massa bruta marombado ao lado. O pau no “ficar em casa” cumpre a mesma função da ladainha antimáscara, enquanto o pau nas restrições ao comércio e aglomerações faz o povo incauto acreditar que o dinheiro sumiu do bolso porque o governador e o prefeito mandaram fechar o comércio duas horas mais cedo. Na verdade, o dinheiro sumiu porque tudo ficou mais caro com a alta do dólar, a falta de estoques reguladores e a alta das commodities no mundo. E qualquer governo minimamente antenado pode tirar de letra uma situação dessas, vendendo dólares na praça para baixar o preço da moeda, restringindo exportações de commodities para não desabastecer o mercado interno, e assim evitar altas de preços.

Um governo antenado chamaria a Petrobras para uma conversa sobre preços de combustíveis, não para congelar preços ou postergar aumentos, mas para subsidiar temporariamente o gás, o diesel e a gasolina, utilizando para isso uma ínfima parte das nossas reservas internacionais de moedas. E quando a situação se normalizasse as reservas seriam repostas com parte dos lucros da Petrobras, em comum acordo com os acionistas e com a transparência necessária para não perturbar o mercado, concedendo-lhes uma dilação no pagamento de impostos. Como se faz para atrair investimentos externos e internos em países mais inteligentes que o nosso.

Mas um governo desantenado e de extrema direita prefere fazer outras coisas. Prefere, por exemplo, xingar as urnas eletrônicas, ministro do STF, passaportes sanitários, carregar nos ombros uma criança atônita num uniforme de infantaria da selva segurando um fuzil de brinquedo na mão. Ou sustentar pela enésima vez que houve fraude nas eleições que ele mesmo venceu e em outras mais. A verborragia da extrema direita é a cortina de fumaça que usa para encobrir sua incompetência e hiprocrisia, quando vem à tona, agora, que seu superministro da Economia, o da Saúde e outros guardam seu dinheiro não no Banco do Brasil ou na banca privada nacional, mas em paraísos fiscais onde ficam a salvo das crises políticas com graves reflexos econômicos que o chefe de seu governo cria sem cessar.

Junto com a destruição do Estado de Direito, a extrema direita quer a disfunção  da economia, para colocar aí a cereja do bolo: uma convulsão social pela fome e pela miséria que justificaria, no seu limite, um estado de sítio para ser logo seguido pela tão sonhada ditadura. Não com Congresso e STF necessariamente fechados, mas sob o controle de senadores, deputados e togas biônicos e biônicas, nomeados de ofício, chancelados por um arremedo de Ato 5, tão ansiosamente desejado em faixas e cartazes vistos nas manifestações do 7 de setembro e outras anteriores.

Algo deu errado no tom. Algo deu errado no timing. Algo deu errado no “esquema” militar. A montanha pariu um ratinho. Ou foi tudo uma alucinação coletiva e passageira. Mas muita coisa deu errado na ascensão de Adolf Hitler e Benito Mussolini e muita coisa parecia ser somente uma alucinação passageira. Até que se instalou o caos no mundo com que sonhava a extrema direita alucinada. E centenas de milhões de pessoas perderam a vida numa guerra louca pelo poder. Uma das poucas guerras que não tiveram causas econômicas ou territoriais relevantes por detrás – não o assalto às riquezas das nações como alvo, mas a tomada das almas dos vivos e dos mortos.

Em 2018 um eleitorado sem noção pôs um ovo de serpente nazifascista no solo da nação. No ano que vem é nossa obrigação esmagá-lo. Ou morreremos do seu veneno.

6/10/2021

Nelson Merlin é jornalista aposentado. 

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