Marina em um momentinho de birra

No finalzinho da netada da quarta-feira, 27/1 – que foi gostosa, agradável, até os 49 minutos do segundo tempo –, fiquei irritado com Marina.

Não porque Marina insistisse em prolongar nossa conversa. Isso ela faz sempre. Faz parte. Dá uma hora e meia, a Mamãe vem dar um toque pra ela. Às vezes a pequena se assusta com a chegada da mãe avisando que já deu o tempo combinado – e, do lado de cá da tela, do lado de cá da Avenida Sumaré, é perfeitamente possível perceber que ela levou de fato um susto, que achava que a brincadeira estava só começando. – “Mas a gente começou a brincar agorinha mesmo!”, ela diz. E não é frescura, não é fingimento: a gente vê no rostinho lindo que ela está surpresa. Achava mesmo que estávamos só começando a brincar – não é possível que já tivessem passado uma hora e meia!

Em parte isso é porque Marina, desde sempre, adora as preparações, os prolegômenos – e, com aquela cabecinha de quase 8 anos, não entende com perfeição que as preparações, os prolegômenos fazem tanta parte da brincadeira quanto a brincadeira em si.

Por exemplo: se vamos brincar de Barbie, ela leva uns bons 40 minutos vestindo e penteando as bonecas – antes de efetivamente começar a ação, a historinha faz de conta envolvendo a Elsa, a Rosa, o Ken, a Alice, a…

Há também o elemento enrolação. Marina é, como a gente gosta de dizer, enroluda – característica que, sou obrigado a admitir, herdou de algum DNA do avô aqui.

Sempre que a Mamãe aparece para dizer que deu a hora – e em geral é a hora que a Mamãe está para servir o almoço –, Marina pede mais um tempinho. E a gente dá – 5 minutos, 10 minutos. Mas mesmo ao final da prorrogação a criaturinha quer mais jogo, quer mais jogo – e a gente tem que dar uma acelerada no processo de dizer tchau, um processo que dura mais uns 2 ou 3 minutos. E a comida lá na mesa, esperando.

Pois é – mas não foi a capacidade dela de enrolar, e pedir mais jogo, que me fez ficar irritado com ela.

Fiquei irritado – aos 49 minutos do segundo tempo, depois de uma partida gostosa, agradável, como sempre são nossas brincadeiras diárias diante da tela – porque Marina estava sendo chata, boba, irracional.

Reclamava, quase chorosa, que não poderia fazer vídeos para nos mandar à tarde e de noite, por causa disso, disso e daquilo.

A Vovó deu algumas sugestões, e ela foi refutando cada uma com algum argumento de quem está tendo um momento de birra, de mau humor impenetrável. De criança que não sabe reagir diante de uma adversidade.

A Vovó disse um último tchau, e pediu para ela dar um sorrisinho antes que desligássemos – mas, no meio da frase, ela desligou.

***

Faço aqui, então, algumas considerações.

Como eu mesmo sempre disse, Marina é, durante a imensa maior parte do tempo, uma criaturinha agradável, gostosa, bem humorada, uma boa companhia, uma gracinha absoluta. Durante uns 98% do tempo ela é assim – uma absoluta fofura.

Sempre foi assim durante todo o tempo em que estamos com ela – em que estávamos com ela juntos, pré-pandemia, em que estamos, nestes meses todos de quarentena, nos falando todos os dias, seis dias por semana, durante uma hora e meia. Na semana deliciosa de férias que nos permitimos passar juntos num sítio em Bragança Paulista, duas semanas atrás, depois de todos fazermos testes e dar negativo.

Durante uns 98% do tempo, Marina é a mais absoluta doçura.

E então agora vem cá – eu me peguei pensando hoje, depois que terminou a netada ao final da qual eu estava irritado com ela:

Tem sentido ficar irritado porque aquela criança de 8 anos incompletos teve três minutos de chatice?

Tem qualquer tipo de sentido exigir que uma criança de 8 anos incompletos – que há mais de dez meses está submetida a uma quarentena duríssima, louquíssima, a rigor absolutamente inimaginável – não tenha um momento de birra?

Tem sentido exigir que uma criança de 8 anos incompletos –submetida há quase um ano a esta inimaginável quarentena, em que não pode brincar com as amigas e os amigos, em que é proibida de abraçar as amigas e os amigos – seja capaz de enfrentar com absoluto fair-play, com fleugma britânica, um momento de fraquejo diante da adversidade?

***

Por uma dessas coincidências fantásticas de que é feita a vida, recebi, algumas horas depois do final da telenetada de hoje que terminou com um gosto de irritação com Marina, uma mensagem da Vivina – que foi minha professora de Francês quando eu tinha 12 anos no Colégio de Aplicação, e virou uma das minhas maiores amigas de toda a vida. Mandou vídeos da sua primeira neta Luísa, hoje com 3 anos e 1 mês, feliz feito pinto no lixo com a chegada do irmãozinho Rafael. Comentei que era lindo ver uma criança feliz com a irrupção em cena do irmão mais novo, e Vivina comentou que Luísa tinha sido bem preparada para receber o Rafael, mas, ainda assim, surpreendeu…

Respondi de volta, eu que sou um avô muito mais experiente que Vivina (Marina vai fazer 8, Luísa acabou de fazer 3), que as crianças sempre nos surpreendem.

Dois minutos depois que desligou, no meio da frase da Vovó pedindo um sorriso, Marina nos mandou uma mensagem de voz: – “Desculpa aí. A Vovó tava falando, né? E eu não percebi.”

Em seguida, mandou outras quatro rápidas mensagens de voz no mesmo tom, pedindo desculpas.

A Vovó respondeu por escrito: “Eu só queria um sorriso”.

A criaturinha mandou uma mensagem de voz de 3 segundos: – “Aí vai um sorriso”.

E, em seguida, enviou uma foto com efeito do Messenger – e um sorrisão. Esta aqui:

***

Quando Marina tem um momentinho – mínimo, ínfimo – de birra, mau humor, fraquejo diante da adversidade, em meio à pandemia, ela corre para pedir desculpas.

Tem jeito de não amar apaixonadamente essa criaturinha?

28/1/2021

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