Tive o privilégio, a sorte grande maior que ganhar na Loteria, de trabalhar em algumas das redações mais alegres, mais aparentemente bagunçadas, caóticas – e também mais criativas – de que se tem notícia no Brasil. A do Jornal da Tarde ao longo de todos os anos 70 e metade dos 80, a da revista Afinal criada por Fernando Mitre, a da nova Agência Estado reinventada no final dos anos 80 por Rodrigo Mesquita e uma penca de gente extraordinária, a da revista Marie Claire sob a direção de Regina Lemos, possivelmente a redação mais democrática que já houve.
Mas nunca vi nada comparável à editoria comandada pelo Lie na Agência Estado.
Era uma zorra, uma absoluta, fantástica zorra.
Eu me lembro dela como a turma da arte; oficialmente, era a Editoração Eletrônica. Na passagem das velhas máquinas Olivetti para o mundo da informática, ali por volta 1988, 1989, quando a maioria de nós estava ainda aprendendo a lidar com o computador, Lie e sua turma de loucos tinham que preparar a diagramação eletrônica, absoluta novidade, de alguns dos produtos da Agência na época extremamente avançados, como o Faxpaper, o Newspaper – noticiário enviado por fax para empresas de ponta modernas o suficiente para aderir a tais novidades.
Ocupavam uma salinha fechada, com divisórias de vidro, uma espécie de aquário, como a gente chamava, num cantinho da redação. Lie e seus loucos ficavam ali um tanto isolados do resto de nós – e lá dentro daquela salinha reinava o caos.
Fala-se muito palavrão nas redações. (Bem, pelo menos falava-se, quando eu as frequentava.) Mas em nenhum outro lugar do mundo, nem mesmo nos filmes policiais americanos mais barra-pesada, falava-se tanto palavrão quanto na salinha do Lie e sua turma. Palavrões, piadas pesadérrimas e sujíssimas. Histórias cabeludas sobre fulano ou sicrana.
Qualquer profissional de RH, qualquer consultor sobre rendimento do trabalho no ambiente corporativo que olhasse aquilo questionaria: como é possível que em um lugar desse saia uma boa produção?
Pois saía uma produção perfeita. Irretocável. Irretorquível.
Graças à batuta do maestro Lie Liong Khing.
***
Num mundo competitivo e de egos inflados como o das redações das grandes empresas, onde boa parte das pessoas se esforça para brilhar, para demonstrar inteligência, esperteza, agilidade, Lie era um sujeito quieto, sossegado. Low profile – para usar um termo que a gente usava bastante naquela época de implantação da nova Agência Estado, o oposto do jeitão show off de alguns sujeitos que se consideravam semideuses, pra dizer o mínimo.
Se passasse pela redação da Agência Estado uma equipe de headhunters, à procura de grandes talentos, provavelmente não repararia no Lie. Ele ficava lá no fundo do seu cantinho, quieto, tranquilo. Sorrindo, sorrindo sempre, com um jeito que até parecia que era sonso.
Não havia ninguém menos sonso que o Lie.
Descendente de indonésios, chamado por alguns de japonês só pra provocar, Lie era o mineirim que trabalha em silêncio mais mineirim que trabalhava em silêncio que já pisou na fase da Terra.
Trabalhava em silêncio – mas sorrindo.
Poucas vezes vi o Lie sem o sorriso no rosto.
Trabalhava bem, sabia escolher gente para o seu time, e deixava os meninos de seu time à vontade – para zonear e para produzir.
***
Trabalhavam sob a batuta calma, tranquila, sorridente do Lie, naquela Gaiola das Loucas, Márcio Coronato, o Bala (se falar Bráulio Spada ninguém vai saber quem é), Beto Araújo, Eric Braun, Silvio Magarian e Leila Anderson.
Márcio e Bala eram (e ainda são) loucos de pedra. Eric, filho do Castor, José Eduardo Borgonovi e Silva, um dos jornalistas mais brilhantes de que já tive notícia, era um geniozinho, um tanto como o pai. O Silvio e o Beto eram os que mais pareciam mansos, “normais”. E a Leilinha, única mulher naquela salinha de palavrões e piadas imundas… Meu, que figura fascinante a Leilinha!
Leilinha era a primeira a entrar, de manhãzinha – e, portanto, a primeira a sair, às 5 da tarde. Para sair da salinha e chegar até a porta de saída, era necessário atravessar uns poucos metros daquele canto da redação. E não falhava um dia: assim que a pobre Leilinha se preparava para sair da salinha, o povo do Lie começava a berrar a plenos pulmões: – “Tchau, Leila!”
Era a hora em que a redação estava mais cheia – e todo santo dia, assim que o povo do Lie berrava, a redação inteira entrava no jogo: – “Tchau, Leila!”
Era ensurdecedor – e a Leila, uma moça bonita, simpática, agradável, que tinha um jeito de muito tímida, parecia morrer, mas morrer de vergonha.
Era brincadeira dela: não era tímida coisa alguma. E só fazia ar de quem estava morrendo de vergonha para completar a brincadeira. Divertia-se demais com aquilo.
As brincadeiras, no entanto, podiam ser pesadas. O Márcio Coronato me contou uma que eu não conhecia:
– “Vou te contar uma dele com a Leilinha.. O Lie deu de presente um vaso enorme de flores pra ela no dia do aniversário… Ela pegou o vaso… foi embora. Aí ele ligou para a segurança dizendo que uma moça tinha acabado de roubar um vaso da sala do Rodrigo Mesquita… que não era pra deixar ela sair de jeito nenhum.”
Até explicar pro povo da segurança que aquilo era focinho de porco, e não tomada elétrica, foi um inferno…
O apelido de Gaiola das Loucas para a turma do Lie foi invenção do Sandro Vaia, que o Rodrigo havia botado para dirigir a nova Agência Estado ao lado do Elói Gertel – com Júlio Moreno, Laerte Fernandes, Adhemar Oricchio e este escriba aqui abaixo deles.
Eram tempos nervosos na S.A. O Estado de S. Paulo. A Agência Estado queria mudar a forma de relacionamento entre as redações dos dois jormais e as sucursais e correspondentes. Havia uma disputa pelo poder bravíssima. O Carmo Chagas, mestre dos mestres, na época um dos editores executivos do Estadão, escreveu sobre isso no livro 3 x 30 – Os Bastidores da Imprensa Brasileira:
“Notei que estava indo longe demais nessa disputa, num dia em que me vi excessivamente irritado com o Sérgio Vaz, representante da Agência, numa das reuniões de pauta que eu comandava. Pensei: se eu, que sou de paz, estou brigando com o Sérgio Vaz, que também é de paz, então isso não vai acabar bem.”
Bem no meio desse tiroteio, meu amigo Sandro de vez em quando ia se refugiar na Gaiola das Loucas por algum tempo. Márcio Coronato se lembra: – “Sandrão entrava e dizia: ‘Vim aqui dar um pouco de risada com vocês antes que eu mate alguém aí na redação’. E a gente abraçava e beijava o Sandrão.”
***
Num mundo tão cheio de gente disposta a sacanear os outros para brilhar mais, para subir na carreira, ou simplesmente acostumada a falar mal dos outros, a desancar com os outros, Lie era a bondade em pessoa. Lie era literalmente o bom caráter em pessoa.
Creio que o Lie foi uma das pessoas de mais perfeito caráter que já conheci.
Das melhores lembranças que tenho de encontros com amigos nos últimos muitos anos são os almoços que o Lie organizava, a partir de 2005, mais ou menos, depois que todos nós já havíamos deixado a S/A O Estado de S. Paulo.
Lie havia montado uma empresa de criação e design, a SKC, juntamente com o Márcio Coronoto e o Bala. A sede era no Bom Retiro – nunca estive lá; Mary conheceu, num dia em que visitou o trio sem a minha presença.
E então ele lançava a rede para ver se reunia alguns velhos amigos – e nos laçava para almoços longos, demorados, sempre ali no Bom Retiro, aquele bairro fantástico que admiro há tempos mas nunca conheci direito. Sandro, Elói, Márcio, Bala, eu e, claro, o próprio Lie, éramos as presenças constantes. Muitas vezes tivemos também a participação do Rabininho, Moisés Rabinovici, da Mary, do Demi Getschko. Não me lembro se por uma ou outra vez estiveram por lá também o Valdir Sanches e o Júlio Moreno, o cara que descobriu o Lie lá por 1988.
Todos falávamos mal de um bando de gente, de coisas – de erros da Folha, do Globo, do Jornal Nacional, e sobretudo, claro, do Estadão. De fulano, sicrano, beltrano. E do Lula, e da Dilma, é claro.
Jornalista adora falar mal de gente, de coisas, de tudo.
Lie sorria, brincava, contava casos, lembrava histórias, fazia conexões entre uma coisa e outra – mas jamais falava mal de ninguém.
Lie era a bondade em pessoa.
***
Foi internado há vários dias, vítima da pandemia.
A querida Stella Daspet nos informava, nos dava os boletins. Houve dias em que parecia estar melhor, parecia que iria conseguir. O Márcio contou que a Ira, Iranilda, a mulher dele, demonstrou ter esperanças.
Não deu.
Lie está agora sorrindo e contando histórias para o Sandro, a Lenita, o Pedro França. Talvez tenham chamado também o Pio.
27/4/2021
Na foto, da esquerda para a direita, começando pelos que estão atrás: Rubens Pedretti, o Bala, Demi Getschko, Sandro Vaia, eu, Elói Gertel; mais próximos, o Lie, Marcio Coronato e Vera Braz.
Que texto comovido e comovente, Sérgio.
Vale a pena cultivar lembranças assim.
Bj
Vivina
Que texto magnífico, com detalhes um tanto desconhecido pelos familiares mas que nas entrelinhas demonstra a grande generosidades, talento, humildade, que cercava esse grande homem. Obrigada por homenagear essa pessoa exemplar que posso chamar com orgulho de meu tio amado.
Quando perdemos amigo como o Lie sentimos como parte da gente se foi, esse texto comovente é a prova de sua grandeza e genialidade.
Grande amigo, vai deixar saudades!
Minha manhã se inicia com um balsamo, seu texto, histórias saborosas e boas memórias de meu tio Lie ajuda amenizar este momento de dor.
A postura mobilizadora, motivadora regada por um longo sorriso se estendia a familia, louca e diversa, onde um indonésio se misturou a pernambucanos, um ramo negro a qual pertenço, católicos e protestantes, um grande caldeirão, e ele ali, com sua batuta, nos ajudando ir além.
Foi generoso, presente, bondoso. Primeira pessoa com nível superior que conheci me motivou e, em cada uma de minhas investidas, me ajudou a ir além. Fará falta.
Obrigado por suas histórias que ajudam a nossa dor amenizar.
Eu convivi com o Lie Liong King, tive o privilegio de aprender muito com ele, quem nos passava segurança e motivaçao, nunca via ele triste, sempre alegre, a saudade derá eterna, descanse em paz meu irmao, o grande arquiteto do universo esta contigo na eternidade, este caminho todos nòs cedo ou tarfe passara por ele.
Brilhante texto. Me emocionei demais ao ler. Obrigado Sergio Vaz
O Lie era tão Especial, cheguei compará-lo com o irmão (meu esposo), quando aprendi que não devemos comparar pessoas.
Ele foi único, que toda bondade, carinho, cuidado, doação, amor com o próximo…, sejam recompensados, hoje no Paraíso, que onde acredito que Ele deve estar.
E outro conforto se existe, é dele estar com seus Pais e seus irmãos(ã), cunhados Índio e David (outras pessoas maravilhosas na Família) e seus Amigos.
9 Por isso meu coração se alegra, minhas entranhas exultam, e minha carne repousa em segurança;
10 porque não me abandonarás no túmulo, nem deixarás o teu fiel ver a sepultura.
11 Tu me ensinarás o caminho da vida, cheio de alegria em tua presença, e de delícias à tua direita, para sempre.
Salmo 16(15)
Bom dia. Nós do grupo Millenium 536-Glesp sempre tivemos essa visão do Lee. Nos conforta muito saber que o Lee era querido por todos assim como era no nosso meio. Iniciou ontem a sua viajem ao Oriente Eterno. Boa viagem. Vá para os braços do Grande Arquiteto do Universo. Que assim seja.
Servaz,
obrigado meu irmão e amigo, por trazer tantas emoções e boas lembranças do nosso “japonês”.
Ele foi tudo isto e muito mais, acreditem!
Até breve meu irmão, fique em paz e cuide dos nossos queridos amigos por aí (com certeza já estão ao seu lado).
bj
Bala
Lendo o texto, parecia estar vivendo novamente essas histórias e alegrias dos tempos de AE. Pessoal da melhor qualidade e nosso amigo Lie, incomparável! Há pouco tempo ele me disse: “ você está sempre em meu coração, apesar de ser daquele time” (se referindo ao Palmeiras). Em nosso último contato, dias antes de ser internado, encerrou a conversa dizendo: “vamos nos cuidar, curtir mais a vida e saber que já fizemos muita coisa. Viva la vida!”. A vida não acaba aqui, a morte é apenas um recomeço. Viva la vida, amigo Lie! Saudades.
Belíssimo texto, Sérgio. Que falta fará o Lie num mundo despedaçado como o atual.
Um ser humano como nenhum outro, tanto na sua bondade quanto nas suas tiradas e histórias únicas. Vai fazer muita falta! Muito obrigada por tudo, Lie. Parabéns Servaz pela linda homenagem.
Como não amar, como não se emocionar?
Obrigada Servaz pelas preciosas palavras que traduzem um pouco do muito que o Lie foi e sempre será em nossos corações…
Muitas saudades dele com sua trupe naquele aquário instigante & envolvente! Abraços!
Tive a honra de trabalhar com o Lie. Conheci também os integrantes da gaiola, que são meus irmãos legítimos, assim como era o Japa. Ele esteve em minhas horas mais duras da vida, ao meu lado, com abraço fraterno, palavras encorajadoras…
Conversávamos muito na SKC, sobre tudo. Vibrei quanto entrou à maçonaria, onde tenho certeza que deve ter contribuído muito.
Ímpar, fará muita falta com seu sorriso eterno e atitudes de grande ser, que sempre foi. Resta, nesse momento, manifestar gratidão por ter convivido e aprendido muito com ele. Estará sempre em nossas memórias e coração diante de tão grande expressão humana. Avante Lie…
Vai deixar saudade. Nestes dias eu tenho gostado de contar que eu sempre o saudava com: “vou-me embora prá jacarta, lá sou amigo do King”. E ele: “aaaahhhhh, japonêêêês, né? veeejaaaa” :-) Ele sempre dizia “vêêêêêjaaa” :-) Servaz, obrigado pelo texto e pela homenagem a ele.
Meu tio foi um grande homem e repleto de histórias e memórias, seu sorriso a cada palavra dita nos transmitia paz e alegria. Lie era sempre paciência e brincalhão, adorava e sentia orgulho em contar as histórias incríveis de sua família.
Ele nos ensinava o tempo todo, nos mostrava que a vida apesar de nem sempre ser perfeita, precisava ser vivida com muito amor e sabedoria.
Ahh quanta saudade tio…
Grande Mestre Lie foram muitos os ensinamentos, aquela risada doce e a bondade em pessoal vai com Deus QI.
Belo texto Servaz…abs
Bons tempos aqueles, eu gostava de abrir a porta do aquário e falar: ooo japonês!!!!
Ele simplesmente de costas, sem nem saber quem falou, dizia: japonês é a PQP kkkkk.
Saudades!!!