As várias faces de Lula

Lula pode ser acusado de tudo, menos de dogmático. Seu ex-marqueteiro João Santana chamava a atenção para o lado camaleônico do seu cliente. Segundo ele, Lula ora vestia a fantasia do “fraquinho”, ora a do “fortão”. O próprio caudilho já se definiu como uma metamorfose ambulante. Para além de uma avaliação ética, é inegável sua flexibilidade e capacidade de trabalhar com vários cenários.

A ambivalência é um traço de sua trajetória política, desde os tempos de sindicalista, quando saia pela tangente toda vez que lhe cobravam uma definição ideológica. Já como presidente foi o autor da famosa frase “se você conhecer uma pessoa muita idosa e esquerdista é porque ela está com problema. Se você conhecer uma pessoa muito nova de direita, também está com problema”. Conforme seu objetivo pode dizer coisas que até Deus duvida. Em novembro de 2017, afirmou: “nem eu sou de extrema esquerda e nem Bolsonaro é de extrema direita.”

Durma-se com um barulho desses.

Elegível novamente, Lula exercita, mais uma vez, sua flexibilidade em fazer discursos absolutamente diferentes conforme a platéia a que se destina ou as circunstâncias que o rodeiam.

Dois dias após o ministro Edson Fachin do STF anular sua condenação em Curitiba no caso do triplex, fez o discurso típico do “Lulinha, paz e amor”. Disse estar despido de mágoas e apelou para o “não tenham medo de mim”, numa clara referência ao mercado financeiro. Ainda que não o diga, esboçou uma nova “carta aos brasileiros” cujo subtexto foi a pregação de uma união nacional. Em torno dele, é claro.

Ali estava o Lula dócil ou “fraquinho”, para usar a imagem de João Santana. O modelo conciliador e empático da fala tem uma razão de ser. Sua estratégia parte do pressuposto de que 2022 será a reprodução da polarização de 2018 e, para isolar Jair Bolsonaro, é preciso atrair o centro liberal e democrático. Ora, se o inimigo é o atual presidente, não haveria razão para atacar o centro, que pode ser seu aliado de amanhã.

Surpreendentemente, o tom foi outro na última sexta feira, um dia após a maioria do STF ter votado a favor da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro e anulação das provas no caso do triplex. Em vídeo divulgado nas redes sociais, o ex-presidente proferiu um discurso furibundo e cheio de indignações, direcionando sua ira para os “golpistas” e as elites, a quem acusou de serem os responsáveis pelo aumento da fome entre os brasileiros. Bolsonaro foi deixado em segundo plano, claro indicativo de que o alvo de suas imprecações são todos aqueles que foram favoráveis ao impeachment de Dilma Rousseff.

O vídeo intitulado #Lula2022 é a ressureição do Lula “fortão”, do nós contra ele, pronto para voltar ao poder pelos braços do povo, sem concessões ao mercado, às elites e às forças moderadas. Mira-se nos exemplos de Juan Domingo Perón e Getúlio Vargas, que voltaram ao poder nos ombros do povo. É a liturgia do caudilho messiânico destinado a reconstruir um passado vendido como virtuoso. Nessa leitura, a crise brasileira nada teria a ver com a hecatombe ética, política e econômica dos governos petistas.

Como entender a diferença de modulação do discurso pacificador de 10 de março?  O argumento de que o vídeo se volta para pôr em pé de guerra a militância pode ser uma explicação. Mas não a principal.

O cientista político e professor da UFBA Paulo Fábio Dantas Neto observa que o roteiro eleitoral do ex-presidente pode mudar se houver um derretimento da popularidade de Bolsonaro a ponto de deixá-lo de fora do segundo turno. Nessa hipótese a direita mais hesitante poderia se compor com o centro liberal-democrático.

O faro de Lula indicaria que sua volta ao poder seria bem mais difícil no caso de ter de enfrentar, na segunda rodada, um político com o perfil moderado e conciliador. Seu adversário ideal é o presidente, mas e se ele ficar no meio do caminho?

Por enquanto é uma mera hipótese e joga contra ela a disparidade histórica do chamado centro democrático. Há o risco de reproduzir o erro de 2018, quando foi para a disputa presidencial de forma pulverizada. Mas começa a se esboçar nesse campo a idéia da unidade.

Como diz o ditado, onde há fumaça há fogo. Políticos experientes como Gilberto Kassab já levam em conta a possibilidade de  a pandemia e a crise econômica deixar Bolsonaro de fora do segundo turno. Também em política é melhor prevenir do que remediar, e Lula, desde já, tem a vacina para enfrentar o pior dos cenários. Daí adotar uma estratégia ambivalente, capaz de responder a uma ou outra hipótese.

Os discursos do “Lulinha paz e amor” e do “nós versus eles” são elementos dessa estratégia flexível, capaz de se moldar às mudanças de vento. De fato, é precisa a afirmação do Paulo Fábio: Lula não é para amadores.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 28/4/2021.

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