Bolsonaro agradece

Adversários históricos desde o final dos anos 30, Carlos Lacerda e o ator Mário Lago, militante do Partido Comunista Brasileiro, se encontraram atrás das grades, logo após o AI-5. Coube a Lacerda quebrar o gelo: “Mário, na cadeia esquerda e direita se falam, não?”

O ator riu e trocou um aperto de mão. Dois anos antes Carlos Lacerda, principal liderança civil do golpe de 1964, tinha sido um dos protagonistas da Frente Ampla, unindo-se com Jango e Juscelino em torno da bandeira da redemocratização.

A história está cheia de exemplos como esses, nos quais forças políticas de espectro ideológico diferentes deixaram suas divergências de lado em momento de grandes adversidades para derrotar o inimigo comum.

Mas também de contra-exemplos. O mais clássico aconteceu na Alemanha em 1933. Adolf Hitler não teve a maioria dos votos, mas ascendeu ao poder graças à divisão entre esquerda, centro e direita. Os comunistas alemães consideravam a social-democracia como o principal inimigo, chamando-a de “social-fascismo”.

As oposições brasileiras deram uma demonstração de que não aprenderam com a História, como evidenciam as fracassadas manifestações do último domingo. Em vez de se unirem, acentuaram sua divisão, dando uma enorme mão a Jair Bolsonaro, que pôde tripudiar: “É digno de dó”.

Nas redes sociais petistas, o tom era de comemoração pelo fiasco das manifestações convocadas inicialmente pelo MBL e o Vem pra Rua.  Em artigo na Folha, Guilherme Boulos não disfarçou sua empolgação pelo fato de “a terceira via não ter empolgado muita gente”.

O deboche de Bolsonaro poderia também ser estendido à manifestação organizada pela esquerda no Sete de Setembro. Ela também ficou longe de fazer sombra à manifestação golpista do feriado da Independência. Se juntar os 6 mil manifestantes do ato de domingo com os 15 mil do ato do Anhangabaú ainda assim estarão bem distantes dos 125 mil do ato bolsonarista.

O fracasso do dia 12 tem vários motivos, mas sem sombra de dúvida contribuiu, e muito, o sectarismo mútuo. Do lado da esquerda, o PT soltou uma nota saudando “todas as manifestações Fora Bolsonaro”. Era coisa para inglês ver.

Nas redes sociais petistas viralizou o hashtag #FiqueemCasacomLula”. O MBL e o Vem pra Ruas foram tachados de fascistas e golpistas. Em vez de saudar o desgarramento desses movimentos do bolsonarismo, preferiram acicatá-los, criando obstáculos para a construção de uma frente ampla. Ironia significativa da vida: petistas e bolsonaristas soltando fogos porque as ruas ficaram vazias.

O velho hegemonismo, marca registrada do Partido dos Trabalhadores, volta a se manifestar. Frente Ampla, tudo bem, desde que a hegemonia seja sua. Boulos é explícito no seu artigo, defendendo a liderança da esquerda porque é ela que tem força para pôr gente na rua. A eliminação do centro é o sonho de consumo de parte da esquerda. No máximo, admite-se sua participação como caudatário.

O sectarismo, contudo, não é monopólio da esquerda. Os organizadores do dia 12 o convocaram inicialmente com um viés equivocado. O “nem Lula nem Bolsonaro” é, no máximo, uma bandeira eleitoral de determinados setores minoritários até mesmo no espectro do centro. Verdade é que na quinta-feira foi alterado o objetivo da manifestação para o “Fora Bolsonaro”, mas já era tarde.

A ala mais fundamentalista do anti lulismo foi a Avenida Paulista com faixas e camisetas com a palavra de ordem divisionista. Vide o pixuleco do Vem pra Rua, com as figuras de Lula e Bolsonaro. Ora, se já não havia boa vontade do PT e do PSOL com o ato, a direita deu o pretexto para a campanha da esquerda de esvaziamento das manifestações.

A divisão contribuiu para o fracasso, mas não foi a principal causa. As ruas esvaziadas foram um atestado de que a classe média das jornadas de 2013 e do impeachment de Dilma ainda não se descolou do bolsonarismo a ponto de aderir à bandeira do “Fora Bolsonaro”. A “Declaração à Nação” de Bolsonaro também pode ter tido um efeito desmobilizador, com parte de seus eleitores voltando ao seu estuário natural.

O sentimento anti Lula e anti PT é forte até mesmo entre os segmentos das camadas médias que se descolaram do bolsonarismo. Pesquisa do Monitor do Debate Político do Meio Digital da USP realizada com manifestantes de domingo indicou que 38% deles não aceitam dividir as ruas com o PT e a CUT.

Esse não é um dado a ser comemorado. Sem o apoio da classe média, o Fora Bolsonaro é uma bandeira difícil de ser alcançada. O próprio tempo conspira contra ela. Quanto mais próxima a eleição, menor a possibilidade de concretização.

Isso não torna inútil a costura de uma Frente Ampla, ao contrário. Diante da possibilidade de uma derrota eleitoral, Bolsonaro pode tentar dar o golpe antes da eleição. Não se iludam, tem uma base social para seu intento. Provavelmente não repetirá o erro de Donald Trump de tentar o golpe após a derrota anunciada.

A união das oposições –  ao lado dos freios e contrapesos do nosso Estado de Direito Democrático – é o antídoto para a realização das eleições aos moldes já definidos e o respeito aos seus resultados.  Tudo que atrapalhe a união deve ser deixado de lado. Tudo que contribua para a unidade deve ser perseguido.

Isso requer desprendimento, tolerância e conciliação. A divisão é uma forte aliada de Bolsonaro. Se não superá-la, as oposições podem se ver na situação de Mário Lago e Carlos Lacerda, trocando aperto de mão apenas na cadeia.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 15/9/2021. 

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