Não sou propriamente assim uma figura muito chegada ao espírito natalino.
Alguns anos atrás, às vésperas do Natal, cometi um texto com o seguinte título:
“Como se não bastasse tudo o mais, ainda por cima inventamos o Natal.
“Como se não bastassem o câncer, a aids, o enfarte, a proibição de fumar, de beber, de comer sal, gordura, tudo o que tem gosto e dá prazer. A dor de dentes, a dor nas costas, a hipertensão, o triglicérides, o colesterol, a miopia, o astigmatismo, o enfisema, o glaucoma, a hemorróida, a herpes.
Como se não bastassem a má distribuição das riquezas, a nojenta existência de milionários, a maldita existência de miseráveis, o capitalismo, a competição, a inveja, o mau caratismo, a sem-vergonhice, o chefe pentelho, o subalterno preguiçoso ou inepto.”
Escrevi essa diatribe, essa coisa mal-humorada, horrorosa, horrorenda, em 2010, pouco tempo depois de ter conseguido me aposentar, e ter enfim começado a escrever sem parar, sem parar, sem parar, depois de 35 anos em que pude escrever pouco para publicação, entretido que estava em mexer nos textos dos outros, como copydesk, subeditor, editor, redator-chefe.
Escrevi em 2010, mas republiquei aqui neste site em 2013. Passei aqueles três anos aposentado, na boa, podendo escrever o quanto quisesse, e publicar o quanto quisesse – e ainda assim, após três anos, ainda achava a mesma coisa:
“As ruas, as lojas, os ônibus, o metrô, tudo fica absurdamente abarrotado de gente exausta, trôpega, zonza que nem barata. Os bares, sobretudo, os bares se enchem de amadores, com uma infinita obrigação de parecer feliz, que falam alto, berram, e no final da noite assassinam ‘Carinhoso’.
A proximidade do Natal sempre me leva a achar que têm razão os que dizem que a humanidade é uma experiência que não deu certo.”
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No entanto, em dezembro de 2015, já escrevi em outro tom, completamente diferente. Duzentas mil vezes menos feroz, menos emputecido, mais suave.
Claro. Já havia Marina.
“Boa parte dos Natais da minha vida, passei em festas/reuniões organizadas por Suely, a mãe da minha filha. Suely era gregária, e mansamente matriarca centralizadora: sem fazer qualquer esforço, atraía todos para voltear em torno dela. Adorava festa, adorava Natal, e todos íamos para onde ela determinava que fôssemos. Enquanto nossa filha crescia, nos reuníamos sempre na casa de Suely, mesmo e talvez especialmente depois que Fernanda passou a morar comigo e com Mary, a partir acho que dos 14 anos.
Para minha filha assim como para mim, Natal era a cara da mãe dela – e nada foi mais natural que, após a morte de Suely, em junho de 2010, Fernanda passasse a ver Natal como uma coisa pesada, ruim, triste.
Foi só quando chegou Marina que minha filha conseguiu ver de novo o Natal como uma coisa alegre, festiva.
Marina parece ter pelo Natal, por todos os símbolos de Natal, o amor que a avó dela tinha. Como Suely, Marina é festeira, gregária – e gosta especialmente dos símbolos relacionados a Natal.
Filha de Suely-Chiquita Bacana, minha filha incorporou – talvez à força, a fórceps – a coisa de ser a pessoa que junta os parentes no Natal.
Este Natal agora será o terceiro de Marina, embora ela ainda não tenha feito três anos, o que é uma questão aritmética séria para mim, mas isso é o de menos.
O que importa mesmo é que, quando tocou ‘River’ no meu ouvido, eu bem no meio da maré do Natal na Paulista, não senti uma náusea anti-natalina, como sentia em dezembros passados.
Pensei que Marina está adorando tudo, e a mãe dela está organizando a festa, exatamente como a mãe dela fazia.”
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Houve um ano – 1992 – que a Rainha Elizabeth chamou de “annus horribilis”. Não à toa. Um incêndio destruiu parte do Castelo de Windsor, e, pior que isso, seu filho e herdeiro Charles se divorciou de Diana, e uma imensa parte de seus súditos ficou do lado da princesa linda, e não do príncipe feio e sem charme – o que era péssimo para a própria instituição da monarquia. Lembro que abri meu balanço do ano com a frase da rainha.
Para o Brasil, 2021 foi o verdadeiro annus horribilis – e nem seria necessário dar aqui qualquer tipo de explicação. O terceiro ano de desgoverno do sociopata inominável conseguiu ser ainda pior que o primeiro e o segundo. Foi, muito provavelmente, o annus mais horribilis da História do Brasil.
E não foi só no macro.
Neste annus especialmente horribilis para todo o mundo, o segundo ano da pandemia, neste annus muito mais especialmente horribilis para nós, brasileiros, o segundo ano da soma das duas pandemias, a do Coronavirus e a do sociopata, meu irmão Floriano passou meses, diversos, diversos meses sofrendo como um condenado nas galés romanas, como um torturado no DOI-Codi – até poder, coitado, meu Deus do céu e também da Terra, descansar.
A morte não é problema – ainda mais para quem viveu 87 anos bem vividos. A morte é parte integrante da vida, como a a felicidade e a angústia. Problema é sofrer como um condenado nas galés romanas, como um torturado no DOI-Codi.
O Carlos perdeu a mãe, a Marina perdeu a sua Abuelita – a primeira grande perda da vida dela.
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E no entanto, mesmo assim, apesar de tudo isso, apesar disso tudo e de tanto que nem cabe ou coube aqui, chego ao Natal, eu, que sou essa pessoa tão fortemente desapegada do espirito natalino, quase em paz, quase em harmonia com o que interessa.
Acho que estou ficando velho.
Acho que estou chegando perto de também encantar.
Acho que fiquei encantado porque o velório do meu irmão, em vez de ser uma coisa depressiva, down, down, down, acabou sendo uma homenagem feliz, orgulhosa, ao bom homem que ele foi.
Tudo tem a ver, é claro, é óbvio, com as minhas meninas.
Mary está bem, Mary está sempre bem – e o Luiz Carlos Paraná e o grande Paulo Vanzolini que me perdôem, mas que maravilha o tal do amor em paz que o Vinicius cantava e Mary provou que existe, sim, senhor.
Sinto uma saudade imensa de Fernanda, mas é só porque sou grudento demais, porque na verdade a gente se fala sempre, se vê sempre que pode e não estamos longe, muito antes ao contrário.
Inês, a outra menina lá, a que viveu com um jovem Sérgio Vaz de outra encadernação que era muito mais bobão e cheio de culpas por não estar mais na casa da filha, essa está bem, graças a Deus, a Buda, a Oxalá – e daqui a pouco chega aí pra ficar uns dias com a gente.
Minhas meninas maiorzinhas têm, claro, tudo a ver com o fato de eu chegar ao Natal de 2021, o meu Natal número 71 – cacete! -, o Natal número 9 da Criaturinha que só tem 8 anos, menos feroz, menos emputecido, mais suave.
Mas a Criaturinha tem papel especial.
Meu Deus do céu e também da Terra, como Marina Vaz Bucci é linda e fofa!
É impossível ficar puto com o Natal quando no mundo existe essa Criaturinha.
Vamos lá, Simone maravilha. Mande brasa: E então é Natal…
Vamos lá, John: and so this is Christmas, and a Happy New Year. Let’s hope it’s a good one, without any fear.
23 e 24/12/2021