Portugal com a sua “geringonça”, a improvável coligação de governo entre os socialistas e mais três partidos de centro-esquerda que desde 2015 governou o país, era uma espécie de aldeia de Asterix no continente europeu, na qual a social-democracia resistia bravamente à onda nacional-populista que varreu a Europa. Ali os trabalhadores, que eram historicamente base de sustentação da centro-esquerda, passaram para a direita populista, votando em Mateo Salvini na Itália, Marine Le Pen na França, Boris Johnson na Inglaterra, Victor Orban na Hungria.
Mesmo quando o nacional-populismo perdeu as eleições em países que ditam o rumo da União Européia, como a França e a Alemanha, a derrota ocorreu para políticos de centro, como Emmanuel Macron e Angela Merkel. Nesses dois países, os social-democratas sofreram derrotas vexaminosas em 2017. O Partido Socialista da França, por exemplo, saiu das urnas reduzido a uma agremiação irrelevante, sofrendo ainda a concorrência pela esquerda do partido França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon.
A formação de um novo governo na Alemanha – país locomotiva do continente – simboliza importante mudança do mapa político da Europa. O novo primeiro-ministro Olav Scholz conseguiu reconectar ao Partido Social-Democrata, berço da social-democracia européia, com os trabalhadores e constituir um governo de coalizão com os Verdes e os Liberais.
Scholz é um político moderado e em certo sentido seu governo será uma continuidade da estabilidade do de Merkel, de quem foi ministro das Finanças. Mas haverá uma inflexão importante: dará ênfase ao enfrentamento da desigualdade, por meio de uma agenda baseada no binômio social-verde. São bandeiras que a social-democracia européia vem enfatizando, em vez de uma agenda identitária e mais à esquerda como a de Jeremy Corbyn, derrotado de forma humilhante por Boris Johnson na última eleição britânica.
O governo Scholz é fruto do que passou a ser chamado de “coligação semáforo” – vermelho da social-democracia, verde dos ambientalistas e amarelo dos liberais. Sua constituição foi pactuada por meio de um documento de 177 laudas, definindo em detalhe o que deverá ser feito em cada setor do governo. Uma verdadeira aliança programática! Quem dera se o nosso “presidencialismo de coalizão” fosse constituído nas mesmas bases.
A Alemanha não é um caso isolado da onda que se espraia por outros países daquele continente. Nas recentes eleições municipais da Itália o grande vencedor foi o Partido Democrático, uma constelação formada a partir da fusão de herdeiros do antigo Partido Comunista, a esquerda democrata-cristã e liberais. Os derrotados foram o populista Movimento Cinco Estrelas e a extrema-direita de Salvini. A centro-esquerda saiu vitoriosa nos cinco principais colégios eleitorais do país: Roma, Turim, Milão, Nápoles e Bolonha.
Também mudou o mapa da Escandinávia. Há alguns anos a região esteve na vanguarda da onda nacional-populista de direita, erigindo-se em governo nos países historicamente social-democratas. Essa onda virou. Com a vitória da centro-esquerda na eleição da Noruega, todos os países escandinavos – Suécia, Dinamarca, Islândia, Finlândia e Noruega – passaram a ser governados pela social-democracia.
A Espanha é governada pelo Partido Socialista Operário Espanhol desde 2018, quando o atual primeiro-ministro, Pedro Sánchez, se elegeu pela primeira vez. Como a “aldeia gaulesa” – Portugal continua social-democrata -, esse campo mostra que ressurgiu das cinzas, após a hecatombe de cinco anos atrás.
Mesmo na terra do Brexit o Partido Trabalhista dá sinais de recuperação, com o governo Boris Johnson sendo reprovado por 65% dos britânicos. Se as eleições fossem hoje, a centro-esquerda seria o vencedora, pois, pela primeira vez em uma pesquisa, aparece à frente dos conservadores. O grau de rejeição de Johnson pode levar à antecipação das eleições.
Mas não é um movimento homogêneo e está sujeito a intempéries. Nas eleições municipais da Espanha, em 2019, a direita ganhou a estratégica prefeitura de Madri, em uma derrota, sobretudo, para o partido Podemos, de configuração mais à esquerda do que o PSOE. Em Portugal, a direita e a esquerda radical se uniram para rejeitar no parlamento o orçamento apresentado pelo governo social-democrata, com vistas à convocação de nova eleição parlamentar.
E na França, cuja eleição presidencial acontecerá em 2022, o Partido Socialista ainda lambe as suas feridas, com grande chance de repetir o fracasso de 2017, quando seu candidato Benoît Hamon obteve apenas 6% dos votos. Até os Republicanos, o partido gaullista, se recuperaram e sua candidata a presidente Valérie Pécresse – considerada pelos franceses como um mix de Margareth Thatcher com Angela Merkel -, já ocupa o segundo lugar nas intenções de voto e pinta como favorita para derrotar Macron no segundo turno. Enquanto isso, a presidenciável do Partido Socialista aparece nas pesquisas com os mesmos 6% da votação do seu partido há cinco anos.
Isso não elimina o fato de a fortuna ter voltado a sorrir para a social-democracia depois de um longo período no deserto. Tem muito a ver com o fracasso dos gestores de governos populistas na Europa. Com raríssimas exceções, eles não conseguiram dar respostas satisfatórias à epidemia, sobretudo porque o isolacionismo não é o caminho para a reconstrução econômica do continente – nem de canto algum.
O discurso eurocético perdeu impulso, enquanto a União Européia se fortaleceu, apesar da saída da Grã-Bretanha.
Os ventos que varrem a Europa arejam o ambiente político, reforçando as esperanças de um continente com maior sensibilidade social e ambiental.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 15/12/2021.