A canção de Jennifer Lopez

Histórico, destinado a figurar nas enciclopédias, nos livros – tem presença garantida nas próximas edições do catatau 1001 Dias Que Abalaram o Mundo –, o 20 de janeiro de 2021 foi, é claro, repleto de símbolos. Houve os mais efetivamente importantes, os que mudam o curso dos eventos, como a assinatura dos documentos que garantem a volta dos Estados Unidos ao Acordo de Paris e à Organização Mundial da Saúde.

Para os próprios Estados Unidos, em termos domésticos, para usar a expressão deles, muito provavelmente o símbolo mais importante de todos tenha vindo já à noite, pouco antes do espetáculo de fogos de artifício que iluminou a bela cidade construída às margens do Rio Potomac: o encontro de três ex-presidentes da República, dos dois partidos que se alternam no poder há cerca de 250 anos, como parte de uma grande celebração à América. que reuniu artistas dos mais diversos cantos do país.

Três ex-presidentes da República – George W. Bush, Bill Clinton, Barack Obama –, dos dois partidos rivais, celebrando a democracia, o ritual sagrado da passagem do poder, a cada 4 anos, de um eleito para outro eleito.

Para mim, no entanto, para este microbiozinho habitante de país periférico deste pequeno ponto de azul pálido pertencente a um sistema solar sem importância, o mais belo, o mais emocionante do dia foi ver Jennifer Lopez cantar “This Land is Your Land”, junto do Capitólio, na cerimônia de posse de Joe Biden e Kamala Harris.

Me senti como se minha turma estivesse voltando, depois de quatro anos em que ela havia sido banida pelos seres do mal que tomaram o poder e instalaram o inferno na Terra.

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Bruce Springsteen, o imenso, colossal roqueiro que tem raízes na música folk – e que estava lá abrindo o “Celebrating America”, o programa de uma hora e meia de duração transmitido por todas as redes de TV americanas e por emissoras ao redor do mundo, como aqui a GloboNews –, cantava “This Land is Your Land” nos shows em grandes estádios que fez em praticamente todos os Estados americanos entre 1975 e 1985. Muitas das apresentações foram gravadas, é claro, e transformadas em uma monumental caixa de 5 LPs chamada Bruce Springsteen & The E Street Band Live/1975-85, lançada em 1987 pela Columbia, aqui na época CBS.

A gravação da canção de Woody Guthrie escolhida para a caixa de álbuns foi feita no Nassau Coliseum, na região de Long Island, Nova York, em 28 de dezembro de 1980 – e, antes de iniciar, Bruce faz uma introdução à música. Explica que Woody Guthrie a compôs (no finalzinho da década de 30, a década da Grande Depressão) como uma “angry song”, uma canção feita com raiva, em resposta a “God Bless America”, de Irving Berlin. Guthrie – um ativista pelos direitos dos trabalhadores, pela criação de sindicatos, que tinha gravadas no seu violão as palavras “This machine kills fascists”, esta máquina mata fascistas – achava que a canção de Irving Berlin não falava do povo, das pessoas simples, comuns, dos trabalhadores que faziam a grandeza dos Estados Unidos.

Com a voz um tanta embargada de emoção, The Boss termina seu pequeno discurso dizendo; “Esta é uma das canções mais belas que já foram feitas em todos os tempos” – e aí presenteia o mundo com uma das mais emocionantes interpretações que pode haver de “This Land Is Your Land”.

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Woody Guthrie (1912-1967) e aquela que se tornaria a mais conhecida canção entre as mais de mil compostas entre 1936 e 1954 têm uma característica básica em comum: não explodiram da noite para o dia. Muitíssimo ao contrário.

Os registros são de que Woody escreveu a letra da canção – à qual deu inicialmente o título de “God Blessed America” – em 1940, adaptando a melodia de um hino batista, “Oh, My Beloved Father”, que havia sido gravado pela Carter Family como “When the World’s on Fire”.

Criar novas letras e adaptar melodias tradicionais, do folclore, muitas delas originárias da Inglaterra, Escócia ou Irlanda, era comum entre os músicos que, como Woody e seus amigos e contemporâneos, Cisco Houston, Leadbelly, cultivavam o gênero conhecido como folk, das folk songs. Estudiosos, musicólogos como Alan Lomax, fizeram um maravilhoso trabalho de garimpagem dessas canções; Woody Guthrie gravou para Lomax centenas e centenas de canções que ouvia em suas andanças pelo país então afundado na Grande Depressão.

A folk music desses compositores era então divulgada ao vivo, em pequenos grupos de pessoas, trabalhadores, ativistas. E era objeto de estudo de acadêmicos – não coisa que se tocasse no rádio.

Já a partir do final da década de 40, a saúde de Woody começou a se deteriorar. Foi diagnosticado com alcoolismo e esquizofrenia – até ser internado em 1956 no Greystone Park Psychiatric Hospital, em Nova Jersey, com sintomas da doença de Huntington – uma desordem neurológica fatal e hereditária, que sua mãe havia tido.

Foi no mesmo ano de 1956 – no dia 17 de março – que se realizou, por iniciativa de amigos do músico, um concerto beneficente, cuja renda serviria para cobrir as despesas dele e de sua família. “O concerto se mostrou memorável”, conta a biografia  Woody Guthrie, a Life, de autoria de Joe Klein, lançada em 1980 pela Alfred A. Knopf. “O concerto foi uma reunião de vários grupos – dos Almanac Singers, do pessoal da People’s Songs e do resto da comunidade folk esquerdista. Pela primeira vez em anos eles estavam todos às claras, celebrando um de seus heróis.”

(É preciso lembrar, para compreender a frase acima, que os Estados Unidos começavam ali, aos poucos, a sair da atmosfera sufocante dos anos do macarthismo, da caça aos comunistas e a qualquer um que tivesse uma vez na vida dito olá a um suspeito de ser comunista.)

“Mais de mil pessoas lotavam o salão naquela noite e o programa se encerrou com todos os participantes se reunindo para cantar ‘This Land Is Your Land’. (…) Anos mais tarde, (Pete) Seeger e outros se lembrariam daquela noite como um momento importante no renascimento da música folk. Mas foi mais do que isso: foi o início da canonização de Woody Guthrie.”

Woody Guthrie começou a ser “canonizado”, segundo seu biógrafo, e várias de suas maravilhosas canções, com destaque especial para “This Land Is Your Land”, passaram a ser conhecidas exatamente a partir da época que já não compunha mais, e tinha a saúde cada vez mais debilitada.

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Um garoto nascido em Duluth, Minnesota, em 1941, um ano depois de “This Land Is Your Land” ter sido composta, viria a ser importantíssimo nesse processo de canonização de Woody. Na biografia do velho compositor de folk songs, Joe Klein conta que, ali por 1959, o rapaz, um tal Robert Zimmerman, então inscrito na Universidade de Minnesota, em Minneapolis, leu Bound for Glory, a autobiografia que Woody Guthrie havia lançado em 1943. “Ele se sentava nos apartamentos dos amigos e ouvia discos, velhos 78 rotações, de Woody Guthrie e Cisco Houston cantando juntos, e de Woody sozinho cantando suas Dust Bowl Ballads com aquela voz dura, solitária, distante. (…) Leu o livro em um dia e andou com ele para cima e para baixo, mostrando para os amigos.”

Em janeiro de 1961, o garoto visitou seu ídolo no hospital de Nova Jersey. Em seu primeiro álbum, lançado em 1962, que tinha como título apenas o nome que havia adotado, gravou 13 canções – 11 eram faixas “trad”, traditionals, canções folk de autoria desconhecida, e duas eram assinadas por ele. Uma delas – “sua primeira canção realmente boa”, segundo Joe Klein diz em seu livro – tinha o título de “Song to Woody”.

O garoto tinha o cabelo enrolado, encaracolado, como o de seu ídolo. E copiava dele tudo – o estilo vocal, rouco, fanho, o jeito de tocar violão e uma gaita presa ao pescoço. Tudo.

Seu primeiro álbum vendeu pouquíssimo, quase nada. Mas no ano seguinte, 1963, o grupo Peter, Paul and Mary – que no seu segundo disco, de 1962, havia gravado “This Land Is Your Land”, e feito um imenso sucesso – lançaria em seu terceiro LP três músicas do rapazinho, e ele bem rapidamente se transformaria em um dos maiores monumentos da música popular do mundo.

Quando Woody Guthrie morreu, em 3 de outubro de 1967, aos 55 anos, os últimos 11 deles em hospitais – Joe Klein conta isso na biografia que escreveu –, o já então famosíssimo Bob Dylan procurou os amigos dele e disse que estaria à disposição para cantar em qualquer tipo de concerto beneficente para arrecadar dinheiro para a família do compositor. (Woody teve oito filhos com três esposas; quem cuidou dele no final da vida foi Marjorie, sua segunda mulher, mãe, entre outros, de Arlo Guthrie, que viria a ter uma sólida carreira como cantor.) Houve um tributo a Woody no Carnegie Hall, em Nova York, em 1968; haveria outro em 1970 no Hollywood Bowl, e mais tarde um CD duplo reuniria canções gravadas nesses dois shows. A relação de participantes inclui, além de Bob Dylan e Arlo Guthrie, nomes como Joan Baez, Judy Collins, Richie Havens, Odetta, Tom Paxton e, claro, Pete Seeger.

A essa altura, 1968, 1970, “This Land Is Your Land” já havia sido gravada – entre muitos outros – por Kingston Trio, Brothers Four, Trini Lopez, Harry Belafonte, Glen Campbell, Bing Crosby, Connie Francis, Paul Anka, The Mormon Tabernacle Choir. “Poucos deles” – escreve o biógrafo Joe Klein, com ironia – poderiam compreender que estavam cantando uma canção originalmente imaginada como uma resposta marxista a ‘God Bless America’”.

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Quando a caixa de Bruce Springsteen Live/1975-85 foi lançada, em 1987, ouvi a canção umas 200 vezes. (É a faixa de abertura do lado 6, ou seja, o lado B do terceiro dos cinco LPs, e isso facilitava bastante a repetição.) Estava, então, com 37 anos, e a canção me encantava desde que eu tinha uns 14, em Belo Horizonte, e ouvia embasbacado a gravação de Peter, Paul and Mary, do disco Moving, de 1962.

Peter, Paul and Mary, e logo em seguida Joan Baez e o jovem ainda totalmente folk, não eletrificado Bob Dylan foram minhas primeiras absolutas paixões musicais, junto com Nara – antes mesmo de, ali por 1965, começarem a surgir Chico, Caetano, Gil, Bethânia, Maria das Graças.

Nunca fui roqueiro – tanto que, entre Beatles e Rolling Stones, sempre fui Beatles, porque Beatles sempre foram muito mais que rock’n’roll, muito além de rock’n’roll. Minha praia, desde a adolescência, sempre foi o folk.

Quando recebi meu primeiro salário, por umas semanas cobrindo férias de uma moça na secretaria do Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos de Curitiba, o primeiro disco que comprei na vida foi See What Tomorrow Brings, o álbum de 1965 de Peter, Paul and Mary.

Foi por causa de Dylan, Joan, Peter, Paul and Mary, que mais tarde fui atrás de quem veio antes deles – Woody Guthrie, Pete Seeger, Cisco Houston, Leadbelly, The Almanac Singers, The Weavers.

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Nos últimos anos, em que desenvolvi o gosto de procurar coisas antigas no YouTube…

Aqui devo dizer: não sou um sujeito uptodate, atualizado, antenado, a par de tudo de importante que está saindo. Na verdade, nunca fui. Sempre brinquei que, bem ao contrário dos pós-modernos, dos pós-tudo, sou um pré-antigo.

Não conheço, por exemplo, aquele extraordinário cantor que começou a capella e depois sentou-se ao piano apresentando a canção “Feeling Good”, que Nina Simone gravou daquela forma absolutamente esplendorosa.

Aliás, que bela escolha de canção para o cara apresentar ali diante do Lincoln Memorial, creio que logo após o discurso de babar de Kamala Harris: “It’s a new dawn / It’s a new day / It’s a new life / For me / And I’m feeling good”.

Bem, mas voltando lá. Nos últimos anos, em que desenvolvi o gosto de ouvir músicas no YouTube, demos muitas vezes de cara, Mary e eu, com apresentações dos nossos ídolos, ou de gente próxima a eles, diante dos presidentes americanos. Bill Clinton e Barack Obama tiveram, em seus períodos na Presidência, o bem-aventurado hábito de convidar grandes cantores e compositores para se apresentar na Casa Branca – além de comparecer a tributos prestados a alguns deles em Washington.

Já vimos tributos a Johnny Cash, Paul Simon, apresentações de maravilhas como James Taylor, Alison Krauss, Dolly Parton, o escambau diante dos casais Clinton e Obama.

Pois bem.

Nos últimos quatro anos, não houve apresentações de músicos na Casa Branca – nem o presidente compareceu a tributos a artistas no principal teatro de Washington.

Os últimos quatro anos foram o negror.

Em todos, absolutamente todos os quesitos.

O sujeito que é o ídolo de Jair Bolsonaro – ao lado do torturador juramentado Ulstra – expulsou de cena tudo o que é bom, positivo, digno, justo. Tirou os Estados Unidos do acordo internacional para combater as mudanças do clima, do acordo para diminuir as armas nucleares, da Organização Mundial de Saúde, do acordo para o Irã não fabricar a bomba.

Expulsou de cena tudo o que é bom, positivo, digno, justo.

Quando ouvi Jennifer Lopez começar a cantar o primeiro verso de “This Land Is My Land”, marejei.

Não sou homem de chorar muito. Não porque ache que homem não chora – de jeito nenhum, de forma alguma, nada disso, pelamordeDeus. Acho que chorar é uma abençoadíssima forma de permitir que o sentimento da gente se exprima.

É só que sou assim: choro muito pouco. Fiquei impressionado comigo mesmo quando meu irmão Arnaldo morreu e eu quase não chorei. Quase não chorei mais tarde quando minha mãe morreu.

Chorei feito uma criança quando Jennifer Lopez cantou “This Land Is Your Land”. Do meu lado, Mary chorava também, mas isso não chega a ser estranho: Mary, graças a Deus, é uma chorona.

Chorei feito criança – de pura emoção, de alegria. Minha turma voltou.

21/1/2021

Mais abaixo está a letra da canção.

Aqui, Jennifer Lopez canta na posse de Joe Biden.

Aqui, Bruce Springsteen. 

Aqui, a versão original de Peter, Paul and Mary. 

This Land Is Your Land

(Woody Guthrie)

This land is your land and this land is my land
From California to the New York island
From the redwood forest to the Gulf Stream waters
This land was made for you and me
As I went walking that ribbon of highway
I saw above me that endless skyway
Saw below me that golden valley
This land was made for you and me
I roamed and rambled and I’ve followed my footsteps
To the sparkling sands of her diamond deserts
All around me a voice was sounding
This land was made for you and me
When the sun come shining, then I was strolling
And the wheat fields waving and the dust clouds rolling
The voice was chanting as the fog was lifting
This land was made for you and me
This land is your land and this land is my land
From California to the New York island
From the redwood forest to the Gulf Stream waters
This land was made for you and me
When the sun come shining, then I was strolling
And the wheat fields waving and the dust clouds rolling
The voice come a-chanting and the fog was lifting
This land was made for you and me

Um comentário para “A canção de Jennifer Lopez”

  1. Muito bem escrito caro Sérgio!
    Eu fiz uma grande festa sozinho no dia 20 de Janeiro e espera que não seja a última.

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