Nestes tempos estranhos, acontecem fatos mais do que estranhos. Quando eu poderia imaginar que viria a ser um pianista, admirado por todos na família? E mais isto: que me destacaria em consertos, com performances das quais eu próprio me admiro?
Antes que me tomem por mentiroso, há algumas coisinhas que gostaria de esclarecer. A primeira é que, nos restaurantes, pianista é o funcionário que trabalha na pia, lava a louça – o meu caso, aqui em casa. Quanto aos meus consertos, comecei trocando uma pecinha da torneira, que estava vazando. Ficou ótima. Agora substituo até sifão de pia.
Estes meus talentos vieram naturalmente. Depois das refeições resta lavar muita louça. Em família de descendência italiana e espanhola, no susto almoça-se um canelone, e janta-se uma paella! Sobra a louça suja.
Achei justo ajudar de alguma forma, e assim me aproximei da pia. Primeiro só pratos e talheres, depois panelas, caldeirões, grandes fôrmas de alumínio com sobras de alimento grudadas com super bonder (assim parece), pirex, caçarolas, travessas. Vão se acumulando na pia sem cerimônia, em menor ou maior quantidade.
Se a situação fica grave, vêm reforços. Filha lava, cunhada enxuga, filho guarda. E o pianista só comanda. “Essa chicrinha de café azul vai do lado direito da branca.” “Troque o pano de prato, está muito molhado.”
Aos domingos, entra em cena a máquina de fazer macarrão. Forra-se a bancada da cozinha com farinha, para que as folhas de massa saídas da máquina sequem. Olha a sujeirada… No fogão, o molho cozinha. Cozinha, e respinga, ou transborda para o fogão. Deus me livre!
Em certas noites de sábado, no entanto, vem o estalo. Por que macarrão todo domingo? Que tal… feijoada? Boa ideia. Afinal somos brasileiros. Pega o caldeirão grande!
Agosto de 2020
Este é o volume 10 das anotações de um confinado.
No volume 9, lembranças de viagem ao Sul de Minas para fazer reportagem sobre juiz sui generis.
No volume 8, o juiz que deu a sentença em versos para o acusado de furtar duas galinhas.
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