Flatulava como quem fala. E eu estou a falar – a ver se não me confundo – de Joseph Pujol. Podia descrever-lhe o rosto anguloso, o bigode farto e negro a contrastar com a palidez do rosto, mas seria confundir o cu com as calças. Não era para a cara de Pujol que seja quem for olhava.
Olhos no seu olho, a França contemplava e extasiava-se com o posterior do marselhês Pujol, que trocara o aromático calor do forno de uma padaria pelo palco do Moulin Rouge. O ânus de Pujol, como o de qualquer um de nós, tinha os seus suspiros. Expirava, portanto. A inexorável diferença é que não só expirava, como inspirava também. Como e quando ele queria.
E venham, convida-vos o patrão do Moulin Rouge, assistir à entrevista em que o contratou. Pujol disse-lhe que era capaz, bufando, de imitar trovões, o disparo de um canhão. O patrão anuiu, mas não se rendeu. Tímido, Pujol anunciou: “Bebo, por trás”. O patrão trouxe água e o ânus de Pujol sorveu com elegância um litro que, com igual elegância, logo depositou noutro vaso, talvez já com ligeiro odor de água sulfurosa das termas.
Puxava o ar para o recto e libertava-o usando os esfíncteres. Descobrira isso, adolescente, a nadar no mar, quando sentiu o oceano a inundá-lo. O primeiro espectáculo no Moulin Rouge foi um êxito quase mortal. Esmagada por um espartilho, uma abundante francesa, incapaz de parar de rir, tombou desmaiada e teve de ser socorrida. Passou a haver uma enfermeira em permanência. Pujol, o flatómano, entrava de capa vermelha, calças pretas, gravata e luvas brancas. Imitava o Terramoto de São Francisco, mas começava pelo envergonhado peidinho de menina de colégio de freiras, logo o calórico traque de um talhante, a seguir o melodioso flato da noiva saciada em noite de núpcias, culminando na majestosa bufa de 20 segundos da costureira a rasgar dois metros de chita.
A essa introdução, e após mudança de roupa, nos bastidores, para umas calças com abertura apropriada, Pujol, com ventosidade bem medida, apagava velas a quase meio metro de distância. Deixava que o seu heterodoxo traseiro fumasse um pensativo cigarro e colocava, então, um tubo de borracha no seu órgão, canoro como ouvirão, ligando-o a uma ocarina. Tocava o tão lírico “Clair de Lune”, primeiro, logo depois o “O Sole Mio”, que o público, por lhe faltar rabo para mais, acompanhava a plenos pulmões. Em dias patrióticos, Pujol, ou essa parte dele de que não direi o nome para não enxovalhar a França, tocava a “Marselhesa”. Nestes nossos desditosos tempos de confinamento, Pujol teria vindo a uma varanda de Lisboa, prodigalizar a este povo sedento de ar puro um concerto de límpida analidade, entoando talvez os acordes do “Cheira bem, cheira a Lisboa”.
Em suma, Joseph Pujol, peidando-se das 8 às 9, foi durante anos a vedeta mais bem paga do Moulin Rouge, ganhando três vezes mais do que Sarah Bernhardt. Vinha vê-lo a realeza, o príncipe de Gales e o rei da Bélgica. Estarrecido com o prazer e o domínio que Pujol detinha dos seus esfíncteres, admirava-o o erógeno Sigmund Freud, então fixado na sua fase anal.
Pujol abandonou o mundo do espectáculo na I Grande Guerra, da qual dois dos seus filhos vieram inválidos. Sem ironia: a dor silenciou Pujol. Escolheu voltar ao cálido remanso da sua padaria. Morreu em 1945, soltando sabe-se lá que suspiros. A escola médica da Sorbonne quis comprar-lhe o corpo, fixada, é claro, no estudo do petit trou encantado. Os filhos recusaram. Consta que terão dito: “Há coisas na vida que devem ser tratadas simplesmente com reverência.”
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.