Revolução na moda

Surjo na sala mal desperto, o cabelo desgrenhado, a barba enroscada, só não uma bituca de cigarro no canto da boca porque não fumo. Na mão levo um pé de meia furada, com o dedo indicador saindo pela avaria. “Credo!”, faz minha filha ao me ver. À pantomima, segue-se a condução coercitiva para o banheiro.

De lá saio penteado, barba rescendendo a lavanda, dentes escovados, e… com a meia avariada na mão, o dedo saindo pelo furo.  “Pode me explicar o que é isso?”, diz a filha, um nadinha irritada. Ora, simples. “A meia furou. Preciso comprar outra, mas só uma para substituir esta. A que deixei no quarto está perfeita”.

– Pirou! Que história é essa?

– Por que vou comprar duas meias, se uma está boa? Dinheiro não cai do céu.

– Vamos fazer o seguinte. Jogue essa porcaria no lixo que lhe dou dois pares novos.

Ah, mocinha! Não conhece a determinação do seu pai. Uma hora depois… A balconista se espanta ao me ver entrar com uma meia furada na mão. Eu vinha comportado, nada de dedo espetado. Mesmo assim ela fez uma cara de “o que aparece de doido por aqui”.

Exibo a peça.

– Bom dia, vim comprar uma meia como esta.

– Não sei se vamos ter exatamente dessa cor, mas quantos pares o senhor quer?

–  Nenhum. Quero só uma meia. A outra, que deixei em casa, está boa. Ainda vai durar muito…

Ela parece pensar “veio do Juqueri”. Mas adota atitude profissional.

– Não vendemos por unidade.

– Por que não?

– Porque as pessoas têm dois pés.

O gerente, só observando, de longe. Resolve intervir. Aproxima-se, pressuroso.

– Bom dia meu amigo, em que posso…  – Vê a meia com o estrago na minha mão e quase cai de costas.  – Mas o quê … Que história…?

– A meia furou, quero repor a peça.

O homem recompõe-se rapidamente.

– Sinto muito, meu amigo, isto aqui não é borracharia.

No normal, deve ser pessoa educada, pois resolve baixar o tom.

– Em lugar nenhum do mundo vende-se meia por unidade, como sabonete. As pessoas têm dois…

– Sei, sei.

Diante do meu desaponto (fingido), reage.

– Dou-lhe um desconto! O senhor leva um par de meias praticamente pelo preço de uma.

Ora, por que não? Livrei-me da usada (havia um cestinho de lixo) e efetuei a compra.

A filha, temerosa, me recebeu com cafezinho e biscoito.  Contei a peripécia e ela ficou feliz (e aliviada).

– Veja bem, papai. E se o gerente concordasse em vender só uma meia, mas não tivesse da mesma cor da sua?

– Simples. Eu usaria uma de cada cor. Precisamos nos livrar dessa radicalização de cor combinando. Por que um corintiano não pode usar uma meia branca e outra preta? Ou um manifestante de passeata uma verde outra amarela?

Me olhava espantada. Fui em frente.

– Imagine uma mulher bem vestida, com uma calça que tivesse uma perna de uma cor, outra de outra cor. Uma, vermelho flamejante; outra amarelo ouro. Ou então… Luva prata na mão esquerda, preta na direita. Sapato preto no pé esquerdo, prata no direito…

A filha arregala os olhos.

– Papai, você está revolucionando a moda!

E me dá um beijo.

Maio de 2020

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