Muito, mas muito além de James Bond

Interessante, ou talvez mais apropriadamente esquisito: para mim – ao contrário do que acontece com a imensa maioria das pessoas – Sean Connery não é antes de mais nada James Bond.

Nunca fui um apaixonado por James Bond, nem mesmo um grande fã. Claro, vi o primeiro dos filmes, O Satânico Dr. No, de 1962 – mas de Dr. No guardo muito mais a lembrança de Ursula Andress com aquele biquíni do que propriamente de Bond, James Bond, ou Connery, Sean Connery.

(“Connery, Sean Connery”, foi o título da página do Segundo Caderno do Globo deste domingo – uma beleza de título.)

Vi também o segundo, From Russia With Love, aqui Moscou Contra 007, de 1963, e até li o livro, o primeiro (e creio que talvez o único) dos livros de Ian Fleming que me lembro de ter lido. Mas, de From Russia With Love me lembro mais da canção – bem romântica, bem lacrimosa, bem baba, na voz de Matt Monro – e da beleza da atriz que faz a russa do que tanto assim de Sean Connery.

(Daniela Bianchi, chamava-se ela. A personagem era Tatiana Romanova – o que fazia lembrar de Natasha Rostova. O Sérgio Vaz em início de adolescência, na Belo Horizonte ali de meados dos anos 60, já era fascinado com tudo que tivesse a ver com a Rússia.)

Confiro nas minhas anotações de garoto: vi Dr. No em 1964 e 1965. E Moscou Contra 007 duas vezes em 1965.

No mesmo ano, 1965 – tinha 15 anos –, vi Marnie, de Alfred Hitchcock. E foi Marnie que me transformou em fã de Sean Connery.

Vi Marnie um porrilhão de vezes ao longo das décadas – a última delas para escrever para o 50 Anos de Filmes, em 2011. Acho Marnie um dos melhores filmes de Hitchcock, e um dos mais subestimados. “Um belíssimo filme, um impressionante mergulho numa mente doentia”, escrevi, 46 anos depois de ter visto pela primeira vez no Cine Astor, no Conjunto Nacional, eu garoto da província passeando na Cidade Grande, impressionado com aquela maravilha de sala de cinema, com a quantidade imensa de gente que chegava para a sessão das 22 horas, a sessão depois da que eu vira – e era tanta gente que muitos jovens pulavam sobre as cadeiras, numa corrida de obstáculos, até chegar às fileiras mais próximas da tela, para evitar as multidões que desciam civilizadamente nas fileiras próprias para isso.

– “Você Freud, eu Jane?” – desafia Marnie (Tippi Hedren, a loura de Os Pássaros, em seu segundo e último encontro com Hitch) a Mark Rutland, o homem que se dispõe a tudo para ajudá-la, embora ela rejeite qualquer tipo de ajuda.

Mark Rutland era um homem sério, sisudo, honesto, de princípios, de valores. Depois de ser roubado pela moça bonita, que surgira em sua empresa e parecia uma secretária perfeita, Mark Rutland vai atrás dela para acertar as coisas. As coisas seriam dificílimas de acertar – mas o sujeito é tenaz, persistente, insistente. O personagem me fascinou – e o ator que o compôs conquistou minha admiração eterna.

***

No Facebook, ontem, sábado, 31/10, o dia em que se anunciou a morte de Sean Connery, Maiá Mendonça me desafiou a apontar os grandes filmes com o ator que ela admira – assim como 100% dos seres humanos que gostam de cinema.

“Me diz, por favor”, a Maiá escreveu, “tirando os 7 James Bond, O Nome da Rosa, o pai do Indiana Jones e mais outros 2 ou 3 filmes que a imprensa cita, que outros filmes Sean Connery fez? Queria saber, ver, conhecer, como a torcida do Mengão era fã dele…”

Claro, O Nome da Rosa é um filmaço, baseado no livraço de Umberto Eco – e Connery está brilhante como o frei William von Baskerville, cujo sobrenome sherlockiano já indica suas capacidades dedutivas. Preciso rever O Nome da Rosa, diabo.

E, claro, preciso rever Indiana Jones e a Última Cruzada. Acabei de colocar no 50 Anos de Filmes a segunda aventura de Indy, Indiana Jones e o Templo da Perdição, algumas semanas depois de ter postado Caçadores da Arca Perdida.

Na resposta a ela, assim, de bate-pronto – e sem saber quais eram os 2 ou 3 que a imprensa estava citando –, lembrei de O Homem Que Queria Ser Rei, que ele fez em 1975 com John Huston, ao lado de Michael Caine, uma aventura deliciosa, tão divertida quanto despretensiosa. Nossa, ao pensar no filme, fico imaginando que absurda quantidade do néctar das terras de Sean Connery aqueles três não devem ter consumido durante as filmagens. Meu Deus do céu e também da terra.

Claro, Os Intocáveis – o único filme que deu a ele um Oscar, e mesmo assim como coadjuvante. Mais uma prova de que o Oscar tem quase tantos erros quanto os posts e tuítes daquele ministro da Educação de Bolsonaro…

De Os Intocáveis, tenho uma lembrança que acho interessante.

Os Intocáveis estreou no Brasil em outubro de 1987, quando eu era editor de Cultura da revista Afinal e estava namorando Regina Lemos, alguns meses depois de termos nos separado. Não me lembro exatamente por que, é claro, tantos anos depois, mas o fato é que o grande Geraldo Mayrink, crítico de cinema da revista, não podia ou não queria escrever sobre o filme – e eu me senti na obrigação de, na falta dele, eu mesmo fazer um texto. Diabo, era um Brian De Palma, e chegava badaladérrimo. Não dava para a revista não falar do filme.

Haveria uma pré-estréia num sábado à noite no Comodoro da Avenida São João – um dos mais amplos, mais absurdamente gigantescos cinemas de São Paulo, inaugurado para ser a primeira sala do Brasil a exibir filmes em Cinerama, aquele troço de três câmaras e três projetores.

Naquele sábado, tinha rolado que Regina e eu estávamos bem, tínhamos ido à casa de uns amigos, e as coisas estavam rolando gostosamente. Tive que fazer um danado de um esforço pra cascar fora e chegar às 10 da noite no Comodoro – mas eu era um caxias, um cdf do cão, e então cheguei.

Comodoro lotadinho, lotadinho.

Na hora do tiroteio nas escadarias da estação de trem, o público aplaudiu, gritou, chiou.

Uma coisa absolutamente fantástica, inteiramente espontânea. O público simplesmente começou a aplaudir.

A sequência era uma homenagem de De Palma, cineasta cinéfilo, a Outubro, do Eisenstein. E Elliott Ness e seus Intocáveis pareciam ter a destreza de Indiana Jones. Fiz para a revista Afinal um dos que acho meus melhores leads:

“Quando Indiana Jones se encontra com Sergei Mikhailovitch Eisenstein, em uma das seqüências mais brilhantes, mais bem realizadas deste quase um século de cinema, a platéia aplaude, grita, assobia – como nos velhos seriados, nos velhos filmes de bangue-bangue.”

Na revista Afinal, como dizia meu amigo Valdir Sanches, escondiam-se belos textos.

Mas aí tergiversei bravo.

***

Na resposta à Maiá, lembrei também de Robin e Marian, a obra-prima de aventura e delicadeza que Richard Lester criou em 1976, um ano depois que minha filha nasceu – Robin Hood já velho, cansado, voltando para Sherwood depois de lutar nas Cruzadas, reencontrando seu grande amor, Marian, interpretada por uma Audrey Hepburn , em um dos últimos de seus filmes, linda como os anjos.

Robin e Marian também não está no meu site de filmes. Assim como O Nome da Rosa, Indiana Jones e a Última Cruzada. Tenho os três em DVD. (Sou um colecionador de DVDs; a rigor, sou um colecionador de tudo quanto suporte físico.)

Já tirei Robin e Marian da estante, deixei na sala prontinho pra botar pra passar.

E pensei, diante da provocação da Maiá, em fazer uma anotação sobre Sean Connery hoje, um dia depois do anúncio de sua morte.

(Nas Bahamas, hein? Voltou para a região do Satânico Dr. No, o primeiro 007…)

Ao passar os olhos agora, enquanto escrevo este suelto aqui com os dedos absolutamente sueltos, digitando quase à velocidade de um Lewis Hamilton, fiquei impressionadíssimo:

Meu, quanto filme bom esse cara fez!

Sol Nascente, de 1993, de Philip Kaufman, em que ele contracena com Wesley Snipes, baseado em um livro brilhante de Michael Crichton . (E aqui me pego pensando que li pelo menos três livros que deram origem a filmes com Connery: Moscou Contra 007, Marnie e este Sol Nascente.)

Lá atrás, em 1971, quando ele ainda interpretava James Bond, O Golpe de John Anderson, do grande Sidney Lumet, que já havia sacado o talento do escocês e feito com ele A Colina dos Homens Perdidos/The Hill, passado numa prisão militar no Norte da África durante a Segunda Guerra.

Ele ainda faria mais um filme com Lumet, a primeira versão de Assassinato no Expresso Oriente, de 1974, no papel do coronel Arbuthnot.

E, nos anos 90, Lancelot, o Primeiro Cavaleiro, de Jerry Zucker, de 1995, um dos melhores filmes, creio, a beber na fonte da lenda do Rei Arthur, em que Connery, já sessentão, divide na tela sua beleza com Richard Gere e, sobretudo, a maravilhosa Julia Ormond.

O bicho esteve sempre bem servido de companhias femininas – e não precisava ser James Bond. Em 1999, contracenou com a não menos maravilhosa galesa Catherine Zeta-Jones em Armadilha/Entrapment, uma saborosa aventura. Apareceu numa boa brincadeira ao lado de Uma Thurman em Os Vingadores/The Avengers, de 1998, e outra boa brincadeira, A Liga Extraordinária, de 2003.

Fez também, já passado da meia-idade, o bom filme sério Encontrando Forrester, de 2000, em que interpreta um escritor recluso, tipo J.D. Salinger.

Mas o crème de la crème de Sean Connery velho – tão belo quanto nos tempos em que tinha cabelos, e cabelos fartos e negros, como em Vítima de uma Paixão, de 1958, ao lado de Lana Turner – é, sem dúvida alguma, A Casa da Rússia.

Ah, então foram pelo menos quatro livros que li e que resultaram em filmes com Sean Connery. Li A Casa da Rússia, de John Le Carré, e vi A Casa da Rússia absolutamente embevecido – tão embevecido que não consegui escrever nada, nem sobre um, nem sobre outro.

A Casa da Rússia é pra se rever – como é que dizia o Che? Um, dois, três Vietnãs? É pra se rever uma, duas, três vezes.

O livreiro inglês absolutamente independente declara para a russa Katya, uma das Katyas mais lindas do cinema, apesar de não ser russa, e sim americana de Santa Ana, Califórnia, Michelle Pfeiffer: – “Você é minha única pátria”.

Com aquela voz de Sean Connery.

Ah, meu, nem Michelle Pfeiffer resistiria.

Gostaria de ter tempo na vida para rever uns dez filmes de Sean Connery – e botar posts sobre eles no 50 Anos de Filmes.

1º/10/2020

Um comentário para “Muito, mas muito além de James Bond”

  1. Que voz! Que charme! Que classe!
    No Youtube tem várias entrevistas com ele. Todas me deixaram zureta…

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