Hiroshima paira sobre nós

A morte caiu do céu sobre Hiroshima, às 8h45 de 6 de agosto de 1945. Do ventre do Enola Gay, um bombardeiro B-29, saiu o primeiro artefato nuclear usado em uma guerra. A bomba atômica tinha um nome inofensivo, Little Boy, mas era terrivelmente mortífera. Cento e quarenta mil pessoas perderam suas vidas em Hiroshima. Outras 70 mil morreriam dias depois, quando a segunda bomba estourou em Nagasaki. Mais 130 mil morreriam até 1950 em consequência da radiação.

Os horrores da “rosa radioativa estúpida e inválida” inspiraram filmes e livros. O mais célebre deles, Chuva Negra, de Masuji Ibuse, baseado em diários de sobreviventes de Hiroshima, descreve a destruição gigantesca, a peregrinação dos sobreviventes em estradas cheias de corpos, o desconhecimento dos efeitos da radiação. Impossível esquecer a cena de uma menina de três anos brincando, à beira de uma estrada, com os seios do cadáver de sua mãe.

Mais estúpida do que a Rosa de Hiroshima, só a corrida nuclear que a sucedeu. Na Conferência de Potsdam, realizada menos de um mês antes da utilização da primeira bomba atômica, Harry Truman, presidente dos Estados Unidos, informou a Josef Stalin que seu país tinha uma nova arma com enorme potencial de destruição. O ditador soviético não passou recibo. Desde 1943 a URSS também estava desenvolvendo seu projeto bélico nuclear. Os EUA saíram na frente, mas em 1949 os soviéticos testaram, com sucesso, sua primeira bomba de hidrogênio.

“Little Boy” foi o marco zero da insana corrida que pôs a humanidade diante da possibilidade de um holocausto nuclear. Por pouco não aconteceu na crise do mísseis de 1962. Durante a guerra fria, o mundo esteve sob ameaça de um paiol nuclear constituído por 69.200 artefatos. Estados Unidos e União Soviética disputavam quem poderia destruir o planeta mais vezes.

Essa lógica foi invertida em 1987, com o acordo histórico assinado entre Ronald Reagan e Mikhail Gorbatchov, conhecido como Tratado das Forças Nucleares de Alcance Intermediário – INF, em inglês. Foi o primeiro acordo de destruição de artefatos nucleares. O número reduziu significativamente para 13.400. Novo avanço seria dado em 1991, com a assinatura do Tratado de Redução de Armas Estratégicas – Start.

Com o fim da União Soviética e da guerra fria, parecia que marchávamos para um mundo desnuclearizado do ponto de vista bélico. O risco de novas Hiroshimas pareciam desaparecer e a tragédia ficava viva na memória da humanidade como um exemplo que jamais deveria ocorrer novamente.

Para promover a conciliação com o passado, Barack Obama visitou a cidade japonesa bombardeada pelo Enola Gay. Foi o primeiro presidente americano a pôr os pés em Hiroshima. Ao relembrar o tenebroso 6 de agosto de 1945, afirmou: “Era uma manhã luminosa e nublada. A morte caiu do céu e o mundo mudou.”

Ao final da primeira década deste século havia um clima de otimismo quanto a novos avanços no desarmamento nuclear. Obama assinou o acordo com o Irã e mais um tratado de redução de armas estratégicas, conhecido como Novo Start. O céu estava claro. Cobriu-se de nuvens quando Donald Trump anunciou, em 2018, a nova doutrina americana para armas nucleares. Foi o ponto de partida para ressuscitar a corrida armamentista com os mesmos personagens: Estados Unidos e Rússia.

O ponto central da nova doutrina são artefatos nucleares táticos transportados por submarinos, que podem ser acionados contra alvos específicos, possivelmente do Irã ou da Coréia do Norte, aliados da Rússia de Vladimir Putin. Ao mesmo tempo, Trump retirou os Estados Unidos do tratado de armas de médio alcance e também pretende se retirar do tratado de armas estratégicas, cuja vigência encerra-se em fevereiro de 2021. O presidente americano anunciou ainda a intenção de criar um “guarda-chuva” anti arma nuclear no leste da Europa e de realizar o primeiro teste nuclear depois de 32 anos.

O país de Putin também não deixou por menos. Ameaçou retaliar qualquer ataque a alvos específicos de seu país ou de países aliados. A Rússia voltou a investir pesado em armamento nuclear, desenvolvendo um míssil hipersônico com uma velocidade 27 vezes maior do que a do som e capaz de realizar manobras para vencer qualquer defesa antiaérea. O país tem ainda um superpoderoso artefato, o chamado “míssil do juízo final”, com poder de destruir a costa leste dos Estados Unidos.

Rússia e Estados Unidos têm 92% do armamento nuclear do planeta, o que dá bem uma idéia do poder destrutivo de um confronto nuclear entre as duas potências. Passados 75 anos, a humanidade não se livrou do fantasma de Hiroshima. Ele continua pairando sobre nossas cabeças, como uma rosa com cirrose hepática, a anti-rosa atômica, sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada, dos versos de Vinícius de Moraes.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 5/8/2020. 

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