A polícia é a última a aparecer

Anotações de um confinado.

Notas de um repórter.

A diferença entre as anotações do primeiro e as notas do segundo é um século.

Em 22 de maio, o confinado, por falta do que mais fazer, resolveu dar uma olhada no que acontecia no País há cem anos. Buscou na coleção digitalizada do Estadão o exemplar de 22 de maio de 1920. Não havia nada especialmente relevante no noticiário do exterior, que durante décadas ocupou a primeira página; tão pouco nas internas.

Na página 2, no entanto, via-se o título: “Uma palestra com o delegado geral”. A matéria não vinha assinada; em vez disso, trazia: Notas de um repórter.  Nos dias de hoje, o título seria: “Mudanças podem derrubar delegado geral”. Viria bem um subtítulo mais ou menos assim: “Nos locais de crime, a polícia é a última a aparecer.”

Segue o texto:

Corre com muita insistência que é pensamento do novo governador suprimir o cargo de delegado geral, que é, como se sabe, uma das criações da administração que acaba de terminar o seu mandato. Conquanto até agora nada tenha sido oficialmente publicado a respeito, e a solerte reportagem político-oficial não aproveitasse até hoje o boato para os costumeiros mexericos e as infalíveis adivinhações, parece que alguma coisa de verdade há nisso.

Não fosse assim, não se compreenderia que expondo-nos, por uma gentileza a mais que lhe ficamos a dever, os pontos principais de seus planos de administração, o dr. João Baptista de Souza tivesse o cuidado de frisar bem que só o porá em execução, se continuar no cargo, e se o governo o aprovar. Se a segunda condicional é perfeitamente explicável, não o é, entretanto, a primeira, que sugere, desde logo, uma dúvida.

Por que não há de continuar a exercer um cargo, para o qual decerto não foi nomeado a título de experiência, um funcionário distinto que o governo foi tirar de uma delegacia de polícia onde estava muito bem –  que merece a inteira confiança de seus superiores – e que se sente perfeitamente à vontade onde está? Talvez o boato responda a isso…

Quando estivemos com o novo secretário da Justiça, em sua residência, na praça Carlos Gomes, em Campinas, o dr. Cardoso Ribeiro, que então cogitava da escolha do delegado geral, falou-nos por mais de uma vez, no decorrer da palestra que nos deu a honra de conceder, das disposições em que todos os membros do governo se encontravam de trabalhar, mas trabalhar intensamente.

Agora, conversando, os auxiliares do governo – já outro dia o dr. Arruda Sampaio, e ontem o dr. João Baptista de Souza – estamos tendo a confirmação do que ouvíramos em Campinas. Todos revelam-se dispostos, não apenas a dar cabal desempenho de sua tarefa, mas a empreender obra de vulto, reformando o que lhe parece algo susceptível de melhoramento, criando o que não exista.

Conhecendo há perto de vinte anos a nossa polícia, cujo desenvolvimento e cujas necessidades vem sentindo dia a dia no exercício do  cargo de delegado, o dr. João Baptista de Souza está perfeitamente nas condições de informar ao governo o que se pode conservar, o que é preciso modificar, e o que é preciso criar. Pois é justamente isso o que ele pretende fazer.

Começará pelo policiamento da cidade, que dentre os problemas a resolver é dos mais urgentes. O serviço de guarda das nossas ruas, é deficientíssimo, é quase nulo. Basta dizer que num quarteirão que compreenda trinta ruas, apenas três ou quatro são policiadas, como se vê de uma relação que o novo delegado geral mandou tirar.

Por isso é que a imprensa vive a reclamar, e que, não raro, quando se dá um crime na praça pública, a polícia é a última a aparecer…

A deficiência do serviço vem da falta de soldados da Guarda Cívica. Ganhando ninharia, que não basta nem ao menos para sua manutenção, os soldados, que quase sempre são homens carregados de filhos, a medida em que a vida encarece abandonam a farda e vão empregar-se nas fábricas, ou emigram para o interior, a procura de trabalhos rurais.

Para remediar esse mal, lembrou-se o delegado geral de propor algumas tantas medidas, que talvez constituam melhorias bastantes a satisfazer as necessidades dos soltados.

Da série Anotações de um confinado, leia também:
.

Um comentário para “A polícia é a última a aparecer”

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *