“Não aguento mais ouvir a voz de Jair Bolsonaro. Não importa o que ele diga. Desenvolvi um tipo de fonofobia do presidente. Não suporto qualquer som emitido por ele. Tanto faz se está acuado, raivoso ou histérico. Se está feliz me irrita ainda mais, porque deve ser à custa da desgraça de alguém. Diante do desastre que são as mais de 162 mil mortes pela Covid, o sujeito tripudia e diz que ‘todos nós vamos morrer um dia’. Haja antiácido.
“Quando Bolsonaro começa a falar, os sintomas de intolerância, típicos da fonofobia, se manifestam. A irritação fica a mil, bate ansiedade, o mau humor sai pela orelha, tenho vontade de sair correndo, mas me lembro que estou na minha própria casa. O coração acelera, fico estressada e, às vezes, grito com a televisão, coitada.”
Os dois parágrafos acima não são meus – são de Mariliz Pereira Jorge, e abrem o texto dela publicado na Folha de S. Paulo desta quinta-feira, 12/11.
Sinto exatamente tudo isso que Mariliz disse, penso exatamente assim. Só que há aí um problema: todas aquelas frases a respeito da fonofobia valem para mim também em relação a Lula e Dilma, sem falar no modelo de Bolsonaro, o Idiot-in-Chief do Norte. No meu caso específico, creio que desenvolvi uma terrível fonofobia por vozes de líderes autoritários que não sabem falar direito seus idiomas.
E então é preciso voltar a Jair Bolsonaro, especificamente. Bem depressa. Porque é dele que se trata. É ele que infelicita o país neste momento doloroso de nossa História.
“A contabilidade passava de uma dúzia de crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente da República quando ele deu uma freada por orientação do Centrão”, escreveu no jornal O Globo desta quinta-feira Ascânio Seleme, em artigo com o título apropriadíssimo de “Bolsonaro criminoso”. “Não porque não tivesse outras barbaridades para dizer, mais ameaças a proferir, novos crimes para cometer. Mas sim porque precisava dar uma envernizada no seu perfil para que o agrupamento mais fisiológico do Congresso pudesse dele se aproximar. Há dois dias, o escorpião venenoso não conseguiu se conter e voltou a seu estado natural de irresponsável maior da República. Desta vez, o alvo do seu atentado criminoso não foi o Congresso, o Supremo ou a democracia. Agora, ele preferiu golpear a saúde do povo brasileiro.”
Ascânio Seleme trata de tema fundamental, mais importante do que nossa fonofobia: a necessidade de que se discuta que a) Bolsonaro comete mais de uma dúzia de crimes de responsabilidade e b) presidente que comete crime de responsabilidade tem que ser submetido a processo de impeachment.
“Além de festejar um hipotético fracasso da vacina que está sendo testada pelo Instituto Butantan, órgão do governo de São Paulo, onde identifica um inimigo na figura do governador, disse em rede social que ganhava mais uma sobre João Doria. E mentiu categoricamente ao afirmar que a CoronaVac causava morte, invalidez e anomalias. Foi um crime contra a dignidade, a honra e o decoro do cargo que ocupa, previsto na lei do impeachment. Mas deste mato não sai cachorro. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, único com poder para dar andamento a pedidos de afastamento do presidente, já sentou em cima de mais de 30. Se um novo ocorrer, vai ser aquecido sob a mesma pilha gorda.”
Escrevi isto aqui ontem, repito hoje. Pode ser murro em ponta de faca. Não faz mal. Sou useiro e vezereiro em dar murro em ponta de faca. Então repito hoje o que disse ontem:
A verdade dos fatos é que é preciso que juristas e políticos sérios apresentem novos pedidos de impeachment do presidente da República. A cada dia ele comete novos crimes de responsabilidade.
A verdade dos fatos é que é preciso que sejam examinados os cerca de 50 pedidos de impeachment que se acumulam na gaveta do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ). Assim como os novos que deveriam estar chegando.
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“A terça-feira (10) parece ter sido um momento de epifania verborrágica do presidente Jair Bolsonaro, mesmo considerados os seus padrões dilatados”, disse a Folha de S. Paulo em editorial. “Mentiu sobre efeitos de uma vacina em desenvolvimento, comemorou a interrupção —já revertida— da pesquisa sobre o imunizante e insultou homossexuais.
“A espiral de infâmias apenas tinha início quando o chefe de Estado celebrou, de fato, a morte de uma pessoa —e um empecilho no desenvolvimento de um imunizante que pode salvar milhões de vidas.
“Do vulcanismo presidencial continuaram jorrando boçalidades naquela data: ‘Quando falta saliva, tem que ter pólvora’. Refletia sobre como reagir à hipótese de que o presidente eleito dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden, venha a levantar barreiras comerciais adicionais, como retaliação à incúria ambiental do governo federal brasileiro.
“Não se tratou, é preciso esclarecer, de alguma ironia ou tirada humorística. O presidente da República Federativa do Brasil cogitou mesmo, com suas próprias palavras, empregar força militar contra a maior potência do planeta.”
E o editorial da Folha conclui: “A boa nova que vem do norte é haver maiorias dispostas a mandar essas figuras de volta para casa. Se deseja ter o mesmo destino de Donald Trump, o presidente do Brasil está no caminho certo.”
É bem verdade.
A questão é: o Brasil aguenta mais dois anos inteiros com esse idiota na Presidência da República, em sua incansável luta contra as instituições de Estado e a democracia?
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É bem verdade que – como diz Carlos Alberto Sardenberg em seu artigo desta quinta-feira no Globo – cada vez as forças da sociedade parecem não dar mais importância aos absurdos que saem da boca presidencial a rodo, a mancheias, como água caindo das Cataratas do Iguaçu nos meses de março após um verão especialmente chuvoso.
Bolsonaro profere as imbecilidades dele – e o país continua, vai em frente.
Agora, parece que o mesmo começa a se dar em relação ao ex-Posto Ipiranga: Paulo Guedes fala abobrinhas – e, como o que ele fala é irrelevante, não significa nada, não tem lastro algum, como não tinha lastro a moeda brasileira até o advento do real, como anda sem lastro a moeda argentinas, a vida continua, o país segue em frente.
É o que diz Carlos Alberto Sardenberg:
“A ameaça — ameaça? — de tacar pólvora contra o Biden caiu nessa última categoria. As pessoas se lembraram do exército de Brancaleone, do Rato que ruge (filme de 1959), dos Trapalhões do Didi. Os memes abundaram nas redes.
“O mercado financeiro não deu a mínima. Quer dizer, falou o tempo todo do assunto — e foi uma mina de piadas naquele estilo leve dos operadores.
“E, por falar nisso, o mercado também nem ligou para as declarações absolutamente desastrosas do ministro Paulo Guedes. Em circunstâncias normais, o mercado deveria ter entrado em pânico quando o ministro falou na possibilidade de o Brasil não conseguir rolar sua dívida e de isso gerar uma hiperinflação.
“Calote e disparada do dólar —era disso que Guedes falava. E o que aconteceu? O dólar subiu um pouco, a bolsa caiu um pouco, tudo dentro dos conformes.
“Mais: o pessoal até sentiu pena do ministro quando ele se declarou frustrado por não ter conseguido vender uma estatal sequer em dois anos de governo. Logo ele, que, na campanha, dizia que era moleza levantar R$ 1 trilhão com a venda de ativos. E ainda em junho último anunciava quatro grandes privatizações em 90 dias.
“Será que vai (foi?) pelo mesmo caminho da irrelevância?
“Guedes disse que privatizar era o mandato de um governo liberal-democrata eleito para isso. E aqui já revela uma distorção de imagem e conteúdo.
“Bolsonaro liberal e democrata?
“Se Guedes acredita mesmo nisso, está cometendo o mesmo equívoco de Sergio Moro quando foi para o governo imaginando que poderia escalar a guerra contra a corrupção. Assim como a legislação proposta por Moro foi aguada pela própria base, a privatização não passa na turma de Bolsonaro, onde todos ali estão sempre ávidos por uma boquinha.”
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Ponto de vista semelhante – o de que boa parte do país simplesmente não liga mais para as cataratas de asneiras que caem da boca do presidente, porque elas, e ele, são irrelevantes é exposto no editorial de O Estado de S. Paulo desta quinta-feira, que tem o perfeito título de “Bolsonaro no mundo da lua”.
Os brasileiros, afirma o Estadão, “têm mais o que fazer do que dar atenção a um presidente que se comporta como o buliçoso da turma do fundão. Há uma pandemia a enfrentar, uma economia a recuperar e um País a reconstruir”.
O editorial, no entanto, vai ao que me parece ser o ponto central: presidente que comete crime de responsabilidade tem que enfrentar processo de impeachment. Depois de fazer um competente – e chocante – resumo das sandices proferidas por Bolsonaro na terça-feira, diz o Estadão:
“Se tudo isso somado não constitui clara afronta ao decoro do cargo, ou seja, crime de responsabilidade passível de impeachment, como determina o artigo 7.º da Lei 1.079, é difícil saber o que mais seria.”
A íntegra do editorial do Estado vai aí abaixo, juntamente com a íntegra do artigo de Ascânio Seleme no Globo.
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Bolsonaro criminoso
Por Ascânio Seleme, O Globo, 12/11/2020
A contabilidade passava de uma dúzia de crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente da República quando ele deu uma freada por orientação do Centrão. Não porque não tivesse outras barbaridades para dizer, mais ameaças a proferir, novos crimes para cometer. Mas sim porque precisava dar uma envernizada no seu perfil para que o agrupamento mais fisiológico do Congresso pudesse dele se aproximar. Há dois dias, o escorpião venenoso não conseguiu se conter e voltou a seu estado natural de irresponsável maior da República. Desta vez, o alvo do seu atentado criminoso não foi o Congresso, o Supremo ou a democracia. Agora, ele preferiu golpear a saúde do povo brasileiro.
Além de festejar um hipotético fracasso da vacina que está sendo testada pelo Instituto Butantan, órgão do governo de São Paulo, onde identifica um inimigo na figura do governador, disse em rede social que ganhava mais uma sobre João Doria. E mentiu categoricamente ao afirmar que a CoronaVac causava morte, invalidez e anomalias. Foi um crime contra a dignidade, a honra e o decoro do cargo que ocupa, previsto na lei do impeachment. Mas deste mato não sai cachorro. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, único com poder para dar andamento a pedidos de afastamento do presidente, já sentou em cima de mais de 30. Se um novo ocorrer, vai ser aquecido sob a mesma pilha gorda.
Talvez o Tribunal de Contas da União possa identificar um outro crime, de interferência indevida do presidente numa agência reguladora, se tocar para valer a investigação solicitada pelo Ministério Público. Difícil não enxergar essa interferência diante do que se viu antes e logo depois da decisão da Anvisa de suspender as pesquisas do Butantan. Para começar, a nota noturna da Anvisa suspendendo os testes já apontava o caminho pelo qual transitaria o capitão logo em seguida. Ao afirmar que houve um evento adverso grave, e mesmo já sabendo se tratar de possível suicídio, listou o que podem ser esses eventos (morte, invalidez, anomalias), dando munição a Bolsonaro.
Todos os erros cometidos pela Anvisa parecem deliberados. 1) A agência não esperou nem sequer o amanhecer para tomar a decisão de suspender a pesquisa. 2) A Anvisa não aceitou a ponderação do Butantan sobre a morte do homem que testara a vacina por não a considerar formal (queria um boletim de ocorrência da polícia), ao contrário do Comitê Internacional Independente e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. 3) O contra-almirante Antônio Barra Torres, presidente da agência, disse não ser parceiro do Butantan. Patético. Os responsáveis pelos testes mereciam confiança, e o BO poderia se ver depois; claro que a Anvisa poderia esperar mais detalhes antes de suspender os testes. E, evidentemente, todos deveriam estar do mesmo lado contra a pandemia.
O contra-almirante e os dois subordinados que deram entrevista explicando a decisão apressada foram instrumentos do presidente. O que Bolsonaro queria era ter um ganho político sobre Doria na reta final da eleição municipal. Seu candidato a prefeito de São Paulo, Celso Russomanno, vai tão mal que talvez nem chegue ao segundo turno. Doria, por sua vez, torce para que ele avance e seja o adversário de Bruno Covas, para dar uma coça em Bolsonaro. As explicações da trinca da Anvisa, Barra Torres, Alessandra Bastos Soares e Gustavo Mendes, na entrevista de terça-feira foram ridículas. Mesmo sabendo desde a véspera que a morte não se devia à vacina, insistiram que o aspecto formal era inevitável. Não era. Tanto que recuaram 24 horas depois.
Sabia-se desde sempre que o contra-almirante era um bolsonarista sem máscaras. Nos bastidores da Anvisa comenta-se que o mandato da diretora Alessandra Bastos Soares vence em abril do ano que vem, e ela busca sua recondução para o cargo. Talvez isso explique a condescendência com decisão baseada em premissas tão frágeis. Sobre o papel do técnico Gustavo Mendes, que disse na entrevista estar falando em nome de todos os seus colegas sem apresentar procuração, sabe-se na Anvisa que ele é daqueles quadros em que os chefes podem sempre confiar.
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Bolsonaro no mundo da lua
Editorial, O Estado de S.Paulo, 12/11/2020
O presidente Jair Bolsonaro, como um valentão na hora do recreio, chamou o País para a briga. Descontrolado como poucas vezes se viu em sua vergonhosa Presidência, classificou como “maricas” os milhões de brasileiros que se preocupam com a pandemia de covid-19.
Donde se depreende que corajoso, para Bolsonaro, é quem ignora as medidas de proteção contra a pandemia, pois, afinal, segundo suas próprias palavras, “todos nós vamos morrer um dia”. Ou seja, o presidente da República está explicitamente incitando seus governados a correr risco de morte.
Mas não ficou só nisso. Bolsonaro questionou a inteligência dos eleitores que apoiam prefeitos “que fecharam as cidades” – isto é, que tomaram providências para conter a pandemia: “Por que esses caras estão bem na frente nas pesquisas, meu Deus do céu?”.
E tudo isso depois de celebrar um suposto revés na pesquisa da vacina desenvolvida pela China em parceria com São Paulo, Estado governado por seu maior desafeto, João Doria.
Quase nada escapou da logorreia de Bolsonaro. Ele atacou os jornalistas, chamando-os de “urubuzada”, tornou a questionar a confiabilidade das urnas eletrônicas nas eleições brasileiras e ainda fez piada grosseira com as movimentações políticas de centro para enfrentá-lo nas eleições de 2022: “Aí vem a turminha aí falar de ‘ah, queremos um centro, nem ódio pra lá nem ódio pra cá’. Ódio é coisa de maricas, pô. Meu tempo de bullying na escola era na porrada”.
Completou a glossolalia queixando-se de que é responsabilizado “por tudo o que acontece no Brasil” e que a Presidência é uma “biboca” que “tem criptonita ou um formigueiro”. Emendou criticando os que querem seu lugar “falando besteira o tempo todo, mentindo, provocando, caluniando, perseguindo os familiares o tempo todo”. A menção aos “familiares” não foi gratuita: sempre que o cerco judicial ao filho Flávio Bolsonaro no escândalo das rachadinhas se aperta, o presidente perde as estribeiras.
Mas a prova cabal de que o equilíbrio de Bolsonaro depende cada vez mais das fases da Lua foi sua tresloucada ameaça de declarar guerra aos Estados Unidos. O presidente queixou-se das cobranças feitas por Joe Biden, presidente eleito dos Estados Unidos, a respeito da proteção da Amazônia e, após questionar “como é que podemos fazer frente a tudo isso”, amparou-se no seu chanceler Ernesto Araújo, outro selenita, para declarar: “Apenas a diplomacia não dá, não é, Ernesto? Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora, senão não funciona”. Custa a crer que os militares que estão no entorno de Bolsonaro não se envergonhem de seu “capitão” ante tamanho desatino, que enxovalha a Presidência da República.
Se tudo isso somado não constitui clara afronta ao decoro do cargo, ou seja, crime de responsabilidade passível de impeachment, como determina o artigo 7.º da Lei 1.079, é difícil saber o que mais seria. Mas Bolsonaro desafia os brasileiros e suas leis há muito tempo, desde a época em que, como deputado, violava o decoro a cada vez que abria a boca, sem contudo ser punido. E não será agora, pelo menos enquanto estiver sob a proteção do notório Centrão – que, em troca, coloniza um governo sem rumo, cujo símbolo maior é a inépcia de um ministro da Economia que deu agora de falar em risco de “hiperinflação” em razão da escalada da dívida que lhe cabe, e a seu chefe, administrar.
Mas os brasileiros não responderão a mais esse repto do sr. Bolsonaro, pois têm mais o que fazer do que dar atenção a um presidente que se comporta como o buliçoso da turma do fundão. Há uma pandemia a enfrentar, uma economia a recuperar e um País a reconstruir. “Entre pólvora, maricas e o risco de hiperinflação, temos mais de 160 mil mortos, uma economia frágil e um Estado (o Amapá) às escuras”, lembrou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que completou: “Em nome da Câmara dos Deputados, reafirmo o nosso compromisso com a vacina, a independência dos órgãos reguladores e com a responsabilidade fiscal”. Para nossa sorte, nem todos em Brasília estão no mundo da lua.
12/11/2020
Este post pertence à série de textos e compilações “Fora, Bolsonaro”.
A série não tem periodicidade fixa.
O sujeito perdeu o juízo, surtou, matou a decência – e não se faz nada? (31)
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