Gostaria de entender: não há hoje nas Forças Armadas altos oficiais sérios, dignos, patriotas, respeitadores da Constituição?
São todos grandes enganações, decepções, tipo Augusto Heleno, borra-botas do Silvio Frota e agora do Capitão das Trevas e da Morte? São todos tipo Villas-Boas, que se enternece com o discurso grotesco, apavorante, de admiradora da morte de Regina Duarte?
Não temos mais nenhum oficial da estirpe e do estilo do Marechal Lott, de Castello Branco, de Orlando e Ernesto Geisel? São todos da linha Silvio Frota, Ednardo, D’Ávila Mello, Newton Cruz?
Todos apóiam o cara que Geisel definia como um “mau militar”?
Todos obedecem cegamente o capitão insubordinado que tinha plano terrorista de explodir bombas para chamar a atenção para os baixos soldos? O que foi julgado pela Justiça Militar por indisciplina?
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Escrevi isso aí acima na madrugada deste domingo, 10/5, pouco antes de ir dormir. (Quase exatamente isso aí: dei agora uma acertadinha, acrescentei uma ou outra frase.)
Assim, me fez muitíssimo bem ler, boas horas de sono depois, o excelente, imprescindível artigo da Vera Magalhães no Estadão, “Babás fardados”, em que a jornalista aborda, com perícia, cuidado, conhecimento, informação, acuidade, o mesmo tema que me preocupava e sobre o qual botei aquelas mal-traçadas no Facebook.
O tema preocupa qualquer brasileiro bem-informado – e Vera Magalhães foi maravilhosamente aos principais pontos.
“Na atual conjuntura” – escreve ela –, “em que o presidente afronta o bom senso, as regras sanitárias, as decisões judiciais, os Poderes e a própria Constituição dia sim, outro também, sem descansar nem nos fins de semana, a presença dos generais em postos de comando apequena o papel que as Forças Armadas, disciplinadamente, vinham cumprindo desde a redemocratização: o de zelar pela ordem constitucional.”
Esperava-se que esses generais que hoje trabalham no Palácio do Planalto – prossegue Vera Magalhães – iriam aconselhar e guiar o presidente. Mas eles, hoje se vê, “apenas adulam, como avôs amorosos que agem com condescendência diante das diabruras de netos levados.”
E crava:
“Que os senhores generais percebam, antes tarde do que nunca, que não se espera deles que sejam babás. Mas que honrem as medalhas que ostentam no peito.”
Logo abaixo transcrevo a íntegra do maravilhoso artigo. E, depois, transcrevo também artigo do professor Denis Lerrer Rosenfeld no Estadão desta segunda-feira, 11/9, sobre a mesma questão – a situação das Forças Armadas diante das irresponsabilidades do governo do ex-capitão insubordinado, desrespeitador da hierarquia militar.
Rosenfeld destaca essa anomalia, esse monstruoso absurdo que é termos uma trinca de fedelhos que valem zero, conforme até seus apelidos indicam, mandando em generais:
“O clã presidencial tem dado mostras de que manda no governo e no Palácio do Planalto. Não apenas indica ministros, como os controla, decide até quando devem ou não ficar. Generais que o confrontaram foram banidos do governo, após indignos ataques nas redes sociais. Estamos numa situação que diria patológica: os filhos do presidente atacando ou, mesmo, mandando em generais! Os descontentes que se retirem voluntariamente ou serão obrigados a sair.”
Isso no meio da maior crise sanitária que o mundo já conheceu desde a gripe espanhola de 1918, que levará a uma recessão terrível, com desemprego recorde, quando mais o país precisava de um líder, um estadista – ou, no mínimo, de um presidente da República que não fosse irresponsável, incompetente, louco.
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Babás fardados
Vera Magalhães, O Estado de S. Paulo, 10/5/2020
Era sabido que o ingresso dos militares no governo Jair Bolsonaro, com papel político central e presença em praticamente todas as áreas da administração, seria um marco histórico, para o bem ou para o mal. A narrativa de que os papéis da instituição e de seus integrantes (da ativa ou da reserva) não se confundem já era falsa em tempos de normalidade democrática e sem uma emergência de saúde pública e econômica instalada.
Na atual conjuntura, em que o presidente afronta o bom senso, as regras sanitárias, as decisões judiciais, os Poderes e a própria Constituição dia sim, outro também, sem descansar nem nos fins de semana, a presença dos generais em postos de comando apequena o papel que as Forças Armadas, disciplinadamente, vinham cumprindo desde a redemocratização: o de zelar pela ordem constitucional.
Esses generais se sentiram afrontados por terem sido arrolados como testemunhas num inquérito que investiga se Bolsonaro cometeu graves violações a essa mesma Constituição ao exigir de Sergio Moro controle da Polícia Federal com fins inconfessáveis.
Mas não demonstraram a mesma indignação com esses e outros atos do presidente que, se esperava, iriam aconselhar e guiar, mas que, hoje se vê, apenas adulam, como avôs amorosos que agem com condescendência diante das diabruras de netos levados.
Em plena crise, o Palácio do Planalto se transformou em creche presidencial. A AGU passou a semana dedicada a tirar da cartola toda sorte de recursos para: 1) impedir que Bolsonaro tenha de mostrar à nação seus exames para covid-19, como decidiu a Justiça; 2) impedir que o vídeo de uma reunião do presidente da República e do vice com todos os ministros em meio a uma emergência nacional fosse entregue ao Supremo, e 3) insistir com o STF pela inexplicável (pela ótica republicana) obsessão presidencial em colocar Alexandre Ramagem à frente da Polícia Federal, mesmo depois de já ter nomeado seu preposto para o cargo.
É papel subalterno, que não condiz com uma estrutura de Estado. O advogado-geral deveria ter a independência de dizer ao presidente que certas batalhas são inócuas do ponto de vista jurídico e tóxicas do político. Mas não: Bolsonaro troca as peças de modo a que os novos ocupantes de cargos entendam que ou atendem seus desejos ou estão fora.
O que nos devolve ao triste papel dos generais. Diante das decisões tomadas, eles se verão nos próximos dias em duas circunstâncias constrangedoras, que em nada condizem com os princípios rígidos da hierarquia militar, pautada pela disciplina e pela seriedade.
Além de terem de depor num inquérito e defender Bolsonaro, podem ser expostos aos olhos do País participando de uma reunião ministerial que, segundo relatos dos presentes, mais se assemelhou a um show de horrores, com o presidente vociferando seus caprichos e instando auxiliares e cometerem infrações e ministros batendo boca entre si, xingando integrantes do STF ou afrontando a China.
E o que esses supostos conselheiros fizeram diante dessa cena dantesca, ou quando seu tutelado anunciou que faria churrasco para 30 pessoas quando 10 mil já morreram numa pandemia? Baixam a cabeça, batem continência, juram lealdade a um governo que já se mostrou incapaz de conduzir o País em meio à maior crise da Humanidade em 100 anos.
Não é bonito o retrato histórico dos homens de farda que resultará da associação voluntária com um capitão reformado que, antes de ser escolhido como solução para vencer o PT, era ridicularizado nas mesmas Forças Armadas. Que os senhores generais percebam, antes tarde do que nunca, que não se espera deles que sejam babás. Mas que honrem as medalhas que ostentam no peito.
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Responsabilidade militar
Denis Lerrer Rosenfield, O Estado de S.Paulo, 11/5/2020
O presidente Bolsonaro, ao assumir, manteve uma política de confronto incessante com seus adversários, como se todo aquele que a ele se opusesse fosse um inimigo a ser abatido. Progressivamente, à maneira de Tânatos, o deus da morte na mitologia grega (editorial do Estado de 25/4), ou a pulsão de morte segundo Freud, fez a destruição reger as relações políticas. Amigos e inimigos passaram a caracterizar suas posições, ambos constituindo uma definição volúvel segundo as circunstâncias.
De inimigos objetivos da campanha (Lula e o PT) passou o mandatário para os políticos em geral, para o “sistema”, para os velhos amigos tornados inimigos, como generais do mais alto prestígio, e, enfim, as próprias instituições democráticas, como o Supremo Tribunal e o Legislativo. O resultado foi o isolamento presidencial, recluso em sua própria família, recorrendo, em manifestação recente, a um suposto apoio das Forças Armadas ao seu governo.
Ora, as Forças Armadas devem obediência exclusivamente à Constituição e à defesa nacional. Constituem uma instituição de Estado, não estão a serviço de nenhum governo. Note-se que desde a redemocratização do País, também por elas liderada, juntamente com os adversários de então, como o MDB, e aliados, como o novo PFL, foram o sustentáculo deste mais longo período de democracia no Brasil.
Se observarmos mais atentamente a composição militar do governo, constataremos que as Forças Armadas não constituem um bloco único, há oriundos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, sendo esta última a mais afastada do governo, enquanto o primeiro é o mais próximo, com a segunda ocupando posição intermediária. Mais particularmente, generais do Palácio do Planalto são militares que fizeram parte de sua “turma”. Isso significa também que a sua “turma” não é necessariamente a de outras turmas do Exército, muito menos da Marinha e da Aeronáutica.
Note-se que, aos olhos da sociedade, os militares são responsáveis pelo atual governo e seus fiadores, ela não faz a distinção entre militares da ativa e da reserva, com destaque para o Exército. Isso significa, politicamente, que sua responsabilidade é ainda maior. Seria tentado a dizer que, para além dos fanáticos militantes das redes sociais, eles constituem sua única base de sustentação. Se houvesse uma mudança de posição, o presidente Bolsonaro não teria condições de permanecer no poder.
As redes sociais são influenciadas e tuteladas pelo dito gabinete do ódio, extensão do clã familiar, em cujas mãos parece estar o destino do País. São da estrita confiança presidencial, participam das decisões. A anomalia é gritante! Estamos aqui totalmente afastados do exercício republicano do poder.
Pior ainda, o clã presidencial tem dado mostras de que manda no governo e no Palácio do Planalto. Não apenas indica ministros, como os controla, decide até quando devem ou não ficar. Generais que o confrontaram foram banidos do governo, após indignos ataques nas redes sociais. Estamos numa situação que diria patológica: os filhos do presidente atacando ou, mesmo, mandando em generais! Os descontentes que se retirem voluntariamente ou serão obrigados a sair.
Atualmente, o País enfrenta uma crise epidêmica, uma crise econômica e uma crise política. A primeira, potencializada pela conduta presidencial, dando exemplo do que não deveria ser feito, em desprezo pelo bom senso e pela ciência. Governadores atuam responsavelmente no sem-rumo da liderança presidencial. A situação da economia já não era boa antes da epidemia, com as reformas avançando muito lentamente, pela ausência de diálogo com o Legislativo. E, agora, a crise política, conduzida “exemplarmente” pelo presidente e seu clã! Em apenas duas semanas dois ministros foram “renunciados”, Mandetta, por fazer um trabalho muito bom no combate ao coronavírus, seguindo diretrizes científicas e da OMS; e Moro, por não concordar com as ingerências presidenciais na Polícia Federal. Muita luz ofusca o presidente.
Ainda mais isolado, o presidente redobra a aposta no ataque: o Supremo torna-se o novo inimigo, após as contundentes acusações do ex-ministro da Justiça, símbolo da Lava Jato e da luta contra a corrupção. Ele recorre a alguns políticos do Centrão, os mesmos que ontem atacava como representantes do “toma lá dá cá”, na tentativa de evitar o impeachment. Destrói, assim, a sua própria narrativa!
A situação é crítica. Uma alternativa seria o presidente “converter-se”, isto é, afastar o seu clã dos assuntos governamentais, destituir ministros ideológicos, combater o coronavírus ao lado da ciência, usar o diálogo e a moderação. Outra, os militares mais diretamente engajados retirarem o seu apoio, com as Forças Armadas deixando claro que não pactuam com a polarização atual. Exerceriam a responsabilidade que lhes cabe, dada a sua participação. Ou o impeachment como solução última.
A pior saída seria nada acontecer: um governo incapaz de seguir com o seu programa de reformas e o presidente, um “pato manco”, no meio da algazarra de seus filhos.
11/5/2020
Um lembrete: esta série de textos e compilações “Fora, Bolsonaro” não tem periodicidade fixa.
Até quantos mortos por dia o país vai esperar para botar Bolsonaro para fora? (14)
É preciso concentrar o foco no que importa: tirar Bolsonaro. (13)
É exatamente porque estamos afundados no meio do caos que o impeachment é urgente. (12)
Um dos momentos mais vergonhosos da História. (11)
Até quando o país aguenta um Jim Jones na Presidência? (10)
59% ainda não perceberam, mas é preciso tirar Bolsonaro da Presidência (9)
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