Vão-se lá fender

Ninguém voltará a pintar a mulher nua. A dulcíssima indolência carnal das “Banhistas” e das “Grandes Banhistas”, que Pierre-Auguste Renoir pintou há mais de cem anos, é varrida com escândalo para baixo do tapete pelo austero progressismo de género da revista New Yorker.

Há 40, mesmo 30 anos, eu juraria, olhos rasos de lágrimas, mão sobre a New Yorker, muito mais do que sobre a Bíblia. Depois vi os novíssimos catecismos invadir-lhe as páginas, o reaccionarismo teórico-progressivo a julgar as artes, o cinema, agora a pintura. O pintor Renoir, diz um crítico, deve ser corrido do cânon: o olhar masculino e patriarcal ofende. Ora, se a vogal inicial me dá licença, vão-se lá fender!

Eis a sombra que teima em derramar-se sobre as nossas vidas: temos medo de passar a língua pela sensualidade e de enfiar o dedo no deleite. O prazer está a tornar-se clandestino.

Quem poderá hoje pedir, como o poeta Herberto Helder, “dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue, com ela encantarei a noite”? Quem poderá pintar, como Renoir ou Manet, a nudez das banhistas, a deitada Olympia, os pequenos almoços sobre a erva? Pior, quem ousará voltar a pintar a volúpia trágica, arrepanhada, de dedos no crânio ou na vulva das mulheres de um Egon Schiele?

Onde está a América inocente, de grandes olhos juvenis e curiosos, a descobrir o sabor e requinte da França, essa América de Gene Kelly e de Vincente Minnelli, a sapatear bons dias na cara sorridente de Paris? Onde está a América que recebeu em Hollywood o cineasta Jean Renoir, filho do agora execrado pintor de banhistas opulentamente nuas?

Eis o que penso: a New Yorker é como o dono do urso que Jean Renoir contratou para o seu filme, “Swamp Water”, em 1941, nos pântanos selvagens de Okefenokee. Renoir precisava de um urso. Um homem, nas profundas da Georgia, tinha um em cativeiro. Capturara-o bebé, a conselho de um velho feiticeiro índio, para fazer companhia à linda menina sua filha, que tinha crises de epilepsia. O feiticeiro tivera razão, na companhia do urso a menina não voltou a ter ataques epilépticos.

Renoir foi buscar o urso e ficou abismado com a sua gulodice. Passaram por uma casa de gelados e o urso urrou sem parar até lhe darem meia cassata. Preparou-se tudo para as filmagens e o urso ficou com o dono a dormir na aldeia. Foram buscá-lo, no dia seguinte, e a Renoir ia-lhe caindo uma coisinha indigna aos pés. O dono tinha levado o urso ao cabeleireiro e fizera-lhe uma juba que o deixava entre um caniche e um leãozinho. Para ultraje e desespero do seu dono, o urso de Okefenokee não entrou no filme. Eis o que querem pôr nos filmes: o urso que já não é urso. Eis o que querem verter na tela: a nudez que já não é nudez.

Jean Renoir estraçalhava a língua inglesa com a sua pronúncia francesa. Nesse filme, deu os pequenos papéis à gente dos pântanos, aos habitantes de Okefenokee. Numa cena com o actor principal, Dana Andrews, uma jovem vinha da margem de um ribeiro e subia para uma canoa. Nervosa, fez a coisa a alta velocidade. Iam repetir, ela vinha de novo acelerada. Renoir gritou “Miss, wait a little”, mas o “wait” saiu-lhe com pronúncia de “wet”. Em vez de a mandar esperar, estava a pedir-lhe que, “wet a little”, fizesse um bocadinho de xixi. A jovem, escandalizada, perguntou a Dana Andrews: “Ele quer mesmo que eu faça…” O actor, vivíssimo e deliciado, disse-lhe: “Querida, sabe que estes cineastas estrangeiros têm ideias muito esquisitas.” Os pintores também.

Outro Renoir: nos pântanos selvagens de Okefenokee.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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