O pinguim do Carlão Mesquita

Um artigo da Vera Vaia surgiu na minha mente, quando eu escrevia o texto anterior a este. Impôs-se de tal forma que desisti da minha escrita e dei espaço para o material dela, o que eventuais leitores terão considerado boa troca.

Desta vez, antes de ser abatido pelo Bebeto, entro com o texto dele de uma vez.  Luiz Roberto Souza Queiroz escreveu em 2017 “Os Bastidores da Notícia: Histórias da Redação do Estadão” (Kindle). Tem o que dizer, pois trabalhou 44 anos no jornal. O precioso está não só no conteúdo, como no estilo em que é apresentado.  Tire a medida pelo primeiro dos textos.

O pinguim do Carlão Mesquita

Por Luiz Roberto Souza Queiroz

Num daqueles invernos procelosos da década de 1960, em que as correntes marítimas arrastavam pinguins da Antártida para as praias paulistas, Carlão (Luiz Carlos Mesquita), diretor do Estadão, disse que queria porque queria um pinguim. Consta que ele tivera uma discussão com a mulher e para que ela não ficasse emburrada, pensava em lhe dar um pinguim, pois ficara encantada em ver na televisão as avezinhas resgatadas nas praias de   Santos.

A missão coube ao Toninho Boa Morte, o Antonio Carvalho Mendes, responsável pela sessão de necrológios e que, usando todo o seu poder de convencimento e contando com a sorte de  haver abundância de pinguins recém-chegados (num tempo anterior às severas leis ambientais) acabou conseguindo no Aquário Municipal um pinguim para o Carlão.

A entrega do novo mascote foi no prédio da Major Quedinho e, afável, a ave familiarizou-se com a redação, resolveu se acomodar junto às mesas da sessão Internacional (certamente por ser estrangeira, comentou-se). Ao abocanhar uma sardinha comprada especialmente, provocou inusitada interjeição de dr. Júlio de Mesquita Filho, sob cujas pernas passou: “Homessa”, expressão que talvez só por isso conste nos dicionários.

Depois do fechamento do jornal, lá pelas onze da noite, Carlão desceu para o bar do Hotel Jaraguá, junto com o editorialista padre Nicolas Bôer, para o uísque santo de cada dia, presentes ainda o Alberto Tamer e mais um ou dois jornalistas além, é claro, do pinguim.

Depois que a ave bicou a perna de um cliente do bar, foi exilada para cima do balcão, onde o velho garçom João arrumava as caixas de cigarro americano contrabandeados, seu principal ganha-pão. O pinguim confundiu os pacotes de Marlboro com banheiro, soltou um forte jato de fezes cheirando a peixe sobre os cigarros. O ato provocou lamúrias do barman que, usando guardanapos em vez de papel higiênico, limpava a sujeira e reclamava: “Dr. Carlão, isso é injusto, muito injusto”.

O pinguim estava tranquilo, depois de se recusar a experimentar o uísque que, é claro, lhe foi oferecido, quando um americano completamente bêbado entrou oscilando no bar. O gringo viu o pinguim, parou estupefato diante do bicho, abaixou-se para olhar o pinguim olho no olho. O bar ficou em completo silêncio, vendo o americano esticar o indicador, certamente achando que o bicho era alucinação de bebedeira e foi aproximando o dedo da ave, impávida.

Ao contrário do que o bêbado esperava, o pinguim não se desfez no ar, entretanto, o dedo não passou através dele, mas encontrou penas reais. O gringo deu um berro, recuou ‘de fasto’ e sumiu, gritando ainda e tão alto que seus berros apagavam o riso o bar inteiro.

O pinguim acabou voltando para o Aquário de Santos dias depois já que, ao contrário do que esperava, não ajudou o relacionamento conjugal de Carlão. É que a mulher não gostou de encontrar a ave, gentil presente, boiando em sua banheira, sobre uma grande pedra de gelo. E pelo banheiro inteiro fezes escuras, semilíquidas, cheirando a peixe e que só com pagamento extra e emotivas súplicas a faxineira concordou em limpar.

Nota do administrador:  Como todo mundo que passou um bom tempo pelas redações do Estadão ou do Jornal da Tarde ou da Agência Estado (e eu passei pelas três), sempre ouvi falar dessa história que o Bebeto descreveu tão deliciosamente em seu livro. Mas não conhecia o livro do Bebeto, que em boa hora o Valdir encontrou e do qual resolveu transcrever aqui esse capítulo.

O Valdir é mesmo danado: na semana passada, transcreveu parte de um texto da Vera Vaia – e fiquei me perguntando por que raios eu ainda não tinha pedido à Vera Vaia para publicar os textos dela aqui no 50 Anos. Agora ele traz essa preciosidade do Bebeto. Ué, quem sabe eu não sondo o Bebeto para…?

Bem, vamos ver.

Só gostaria de acrescentar que, na versão que me foi contada, quando cheguei para trabalhar no Jornal da Tarde, então no quinto andar do prédio da Major Quedinho, a exclamação completa do dr. Júlio de Mesquita Filho, ou dr. Julinho Deus, como era chamado, ao ver o pinguim, foi a seguinte:

– “Homessa, um pinguim na minha redação!”

E continuou seu caminho, e continuou a trabalhar, como se a presença de um pinguim na redação dele fosse apenas um acontecimento levemente, suavemente estranho. (Sérgio Vaz)

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