Um meticuloso trabalho de sacristia

O cinema é americano. Eis uma vaca sagrada que nem o #metoo se atreve a beliscar. Belisco eu: o que seria do cinema sem o catolicismo! Sem o arrevesado católico John Ford os westerns nunca seriam o que foram, sem o perverso católico Hitchcock não nos benzeríamos na água benta do medo e do suspense. Mas quem, num meticuloso trabalho de sacristia, protegeu o sensível bebé que era o cinema foi o católico Eddie Mannix. E vejam: os nossos selectos críticos só não o desprezam porque nem o conhecem.

Eddie Mannix foi o braço direito de Louis B. Mayer, patrão do maior estúdio, a MGM, que tinha mais estrelas do que estrelas há no céu. Deus limpará as borradas que fazem as estrelas do céu, Mannix limpava as borradas das estrelas da terra. Era um fixer: tinha a polícia, médicos, juízes e jornalistas na mão. Imaginem que Clark Gable se embebedava e enfiava o popó contra uma palmeira de Los Angeles, ou partia as pernas a um peão. Vinha Mannix, bem antes da polícia, e limpava tudo, Gable, o popó e o peão, enquanto Howard Strickling, seu parceiro, em troca do silêncio sobre Gable, largava à Imprensa um escândalo com alguma estrela de outro estúdio.

Mannix esmerava-se. Para as bebedeiras e cenas de pancadaria de Spencer Tracy, tinha sempre atrás dele uma ambulância e quatro enfermeiros, pugilistas na verdade. Montava segurança aos muros da casa de Greta Garbo para que não lhe fotografassem os delírios hetero ou lésbicos. Cuidava dos abortos das actrizes. E quando Gable violou e engravidou a bela e católica Loretta Young, recusando ela abortar, Mannix e Strickling esconderam-na na Europa, afinfaram-lhe com um regresso triunfal depois do parto clandestino, e ela adoptou uma menina num orfanato, que por acaso era a sua própria filha. A verdade soube-a a filha mais de 20 anos depois.

O católico Mannix era um fixer, fixava as coisas, e ainda era produtor. Caíam-lhe actrizes no colo. Casado, dava-se a lendárias infidelidades. Ora, havia um dogma em que ele era tão inabalável como Dom Manuel Clemente: o casamento era indissolúvel. E só casou com a segunda mulher, a católica Toni Mannix, já antes sua amante, quando morreu a primeira, num intrigante acidente de automóvel, mesmo à muito conveniente beira do rancho de um amigo de Mannix. Digo isto e logo me calo.

Casou indissoluvelmente com Toni, tendo já, porém, uma jovem amante japonesa. A adorável esposa arranjou ela própria o seu brinquedo: foi para a cama com o Super-Homem. George Reeves tinha menos oito anos do que ela, e fora o pedaço de peito e músculos escolhido para ser o Super-Homem na televisão. Mannix, que nesse aspecto tinha um catolicismo de Papa Francisco, achou bem. Jantavam os quatro, férias e viagens a quatro, ele e Toni em 1ª classe, os dois brinquedos na económica, que uma coisa são os bispos, outra os diáconos.

E não é que o Super-Homem trocou Toni por nova amante! Inconsolável, a velha amante telefonava-lhe: “Mas o que é que ela faz? Atira anéis de fumo com a pombinha?” Noto: Toni não disse “pombinha”, apertando a coisa em quatro letras execráveis. E caiu numa desolação que incomodou o marido. Ele não admitia que a catolicíssima mulher sofresse. Súbitos incómodos vieram povoar os dias do Super-Homem: um carro sem travões, lembro-me agora. Até que o encontraram, nu como viera ao mundo, deitado na cama da casinha que Toni lhe comprara, com uma bala na cabeça. Suicídio, disse a polícia, ainda nem a autópsia estava feita. E se foi mal feita. Toni e Eddie continuaram casados, só a morte os separou.

Na foto acima, Toni Mannix e o Super-Homem. Na do alto, Eddie Mannix, à esquerda, de fato escuro, ao lado de Clark Gable.

Da Página Negra, texto publicado no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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