Ao colocar o pé no terceiro degrau da escada, saindo da portaria do meu prédio, vi o homem. Estava do outro lado da rua, inerte; parecia ter estado assim havia semanas. No entanto, mal toquei a calçada, fez um gesto. Apanhou uma bengala, largada na mureta da casa em frente, e pôs-se a caminhar.
Eu não tinha pressa. Comecei a descer a rua, devagar. Ele, por sua vez, demonstrou-se somente alguns segundos apressado. O suficiente para colocar-se à frente do meu campo de visão. Tal atitude me preocupou. Será que aquela pessoa, que me era inteiramente desconhecida, queria que eu a seguisse?
Caminhamos assim um quarteirão. Nesse percurso, notei que o homem capengava ligeiramente; afinal nada incomum, se usava bengala… Em certos momentos tive a sensação de que iria voltar-se para mim, e me olhar na cara. De fato, virou o pescoço, mas seu olhar perdeu-se pelo pedaço de rua que havia ficado atrás de nós.
Súbito, ouvi o motor de um carro que chegava pelas nossas costas e parava na esquina à frente. Era um Uber. O estranho embarcou e se foram. A mim, restou a frustração de não ter vivido o personagem de algum clássico da literatura.
Pronto. Escrevi um textinho para o Servaz, e não falei em Bolsonaro.
Maio de 2019