Apologia da fake-news

Todo o santo ser humano gosta de mentir. A mentira é a verdadeira medida da nossa santidade. Ao mais acabado campeão da verdade sempre diremos, transforme-se o meu amigo num veículo automóvel e meta a verdade no porta-bagagens.

Não digo que a verdade não exista. Num ocasional tribunal, algum desorientado ser humano terá dito uma verdade ou duas. Com tão iniludíveis como penosas consequências. A mão a acariciar a minha Bíblia de veludo, juro: a glória da humanidade está na mentira. Lembrem-se da noite em que Orson Welles relatou a invasão do nosso solitário mundo por furiosos extraterrestres. O frenesim que se apoderou da América: seres humanos a que nenhum sobressalto animaria o baixo-ventre entraram em histerismo emocional, as ruas encheram-se, pilharam-se drogarias, carros afocinharam noutros carros. Eis a alucinação que só a mentira oferece.

Fosse eu um Lobo Antunes, uma risonha Agustina, e cantar-vos-ia o valor seráfico das fake-news. Bem sei que Donald, burlesco anti Quasímodo da Casa Branca, deu mau nome às notícias falsas. Não era assim em 1924. A Inglaterra preparava-se para eleições e o Daily Mail espeta na primeira página com uma carta do camarada Zinoviev, companheiro de Lenine, presidente da Internacional Comunista. Escrevera-a ao secretário-geral do pê cê inglês, um Cunhal de quarta categoria, que Cunhal só há um, o nosso e mais nenhum. Zinoviev explicava ao vermelhusco camarada inglês como devia influenciar e controlar o Partido Trabalhista. O Ministério dos Negócios Estrangeiros de Sua Majestade rasgou as vestes nas ruas de Londres como as futuras femen as rasgam agora em igrejas russas. O apavorado povo foi votar em massa no Partido Conservador entregando-lhe o poder, preparando, quiçá, a farinha com que um dia se faria a papinha do Brexit. Ora, a carta de Zinoviev era mais forjada do que a máscara de santidade de um bispo pedófilo. Falsa como Judas, ou, nas palavras de Estaline, como Trotsky. Mas que verdade podia ter mudado, como esta rematada mentira mudou, o destino do Reino Unido?

A deliciosa mentira provoca arrebatamento e fúria. Em 1956, a América teve uma vertigem. Nas listas dos bestsellers apareceu um romance, “Eu, libertino”, e já adivinhamos o tom sumarento, a trama nudo-terapêutica como conviria ao erótico século XVIII, em que a acção tinha lugar. Na moralíssima Boston, o livro foi mesmo proibido. Reparem, na verdade nem um só exemplar entrara nas livrarias. Talvez por não haver livro nenhum. Talvez por não existir sequer o autor da obra. Um locutor, um ameno Carlos Vaz Marques do tempo, irritado com os bestsellers, inventara esse romance e o seu autor imaginário, aconselhando os ouvintes a pedi-lo nas livrarias. Surpreendido com o fulminante êxito virtual, ele, um amigo e um editor, escreveram depois o livro na prestigiada Ballantine Books.

Confesso: o meu imaginário erótico é escandinavo. O meu bairro de Luanda apontava os incontidos ardores tropicais à libérrima mulher sueca. Ora, Chako Paul é uma cidade sueca habitada só por mulheres: 25 mil. Fundou-a, em 1820, uma viúva rica que odiava os homens. A cidade permaneceu escondida, quase secreta. Anos antes da visita de Marcelo, a notícia atravessou a China. Milhares de homens chineses entupiram o turismo nacional com pedidos de viagens. Desilusão, não há Chako Paul nenhuma. Não haver uma cidade só com 25 mil mulheres é um defeito da realidade que um Fellini sueco faria bem em corrigir. Na consoladora mentira é que meia humanidade encontra a sua realíssima verdade.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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