O caos social e político da Bolívia que culminou na renúncia de Evo Morales diz de perto ao Brasil e a todos os países da América do Sul. Com ele a instabilidade política da região – que já era alarmante com as convulsões sociais do Chile, Equador e Peru – subiu vários graus.
Até por uma questão pragmática interessa a todos, e em especial ao Brasil, cuja maior fronteira é justamente com a Bolívia, uma solução pacífica e democrática para essa nova crise. Ela é mais um fator a afugentar investimentos externos tão necessários a todos os países da região.
Idealmente, a Organização dos Estados Americanos seria o fórum adequado para a costura de uma saída pactuada e constitucional, com a realização de novas eleições supervisionadas por mecanismos internacionais.
Mas o embate entre esquerda e direita contamina os países membros, que se dividem em dois blocos. Um pró Evo Morales, capitaneado pelo México, e outro pró oposição boliviana, liderado pelo Brasil. Para complicar, existem os interesses geopolíticos conflitantes da Rússia e dos Estados Unidos, como evidenciaram as manifestações de Donald Trump e de Vladimir Putin.
O Brasil seria o protagonista natural para um desfecho positivo da crise, capaz de espantar de vez a hipótese de mais derramamento de sangue. Temos com a Bolívia, além da vasta fronteira, interações econômicas importantes e uma relação de amizade e sem conflitos desde que o Barão de Rio Branco equacionou, pela via da negociação, o contencioso do Acre.
Mas, como tem sido uma constante no governo de Jair Bolsonaro, o Brasil abdicou do seu papel de liderança ao tomar partido de um dos lados, como evidenciaram as declarações do presidente e do ministro do Exterior, Ernesto Araujo. A gravidade da situação exige que o Itamaraty retome o profissionalismo com o qual sempre atuou nestes casos, deixando de se guiar por motivos ideológicos.
Agir com profissionalismo implica em compreender que ninguém é santo na Bolívia. Evo Morales já havia forçado a barra para um terceiro mandato e resolveu disputar um quarto, passando por cima da Constituição do seu país e da vontade do povo, que disse não no plebiscito convocado pelo próprio governo.
Só foi candidato pela quarta vez porque tinha aparelhado a Justiça Eleitoral e ela deu uma interpretação para lá de criativa sobre a situação. Mais: fraudou a eleição, como revelou a auditoria da OEA. Em nome dos avanços sociais e do bom desempenho da economia, a esquerda latino-americana fez vistas grossas às constantes violações à democracia praticada pelo caudilho boliviano.
Evo Morales tinha perdido a legitimidade, mas a forma como se deu a “renúncia” também foi uma ruptura da ordem democrática. A cena de chefes militares na TV, com o comandante do Exército dando um ultimato ao presidente, foi uma reprise de um filme que vimos em tantos golpes na América do Sul.
Da convulsão social emergiu uma extrema-direita violenta e golpista, liderada pelo empresário Luiz Fernando Camacho. Casas de partidários de Evo foram incendiadas, milicianos encapuçados prenderam simpatizantes do presidente que renunciou, submetendo-os a humilhação pública.
Esse é o retrato de “Nuestra América”. Uma esquerda que faz vistas grossas quando as violações à democracia são cometidas por “governos populares” e uma extrema-direita raivosa e radical, com ojeriza a valores democráticos.
De Bolsonaro e Lula espera-se comedimento para que o Brasil não venha a ser o Chile ou a Bolívia amanhã.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 12/11/2019.