O pior que pode acontecer a uma democracia é ser tomada por uma polarização entre os extremos, com a redução do espaço para as posições mais próximas do centro do espectro político.
Não é um fenômeno localizado em um país específico, de forma alguma. Como lembra muito bem o embaixador Rubens Barbosa em artigo publicado no Estadão desta terça-feira, 12/11, foi o que aconteceu na mais antiga, sólida, firme, estável democracia do mundo, a Grã-Bretanha: “Com o desaparecimento do voto moderado de centro, a votação do referendo que aprovou a saída do país da União Européia (UE) mudou radicalmente o cenário político no Reino Unido”.
O resultado foi que, por uma pequeníssima diferença, o Reino Unido lançou-se na trilha da saída da União Européia – e com isso afundou-se na mais grave, angustiante crise política dos últimos séculos, da qual não se consegue ver ainda qualquer saída.
Algo semelhante acontece na maior e mais importante ex-colônia do Império Britânico: embora com menos votos dos eleitores, mas por uma pequena maioria de votos no colégio eleitoral, os Estados Unidos elegeram um republicano de extrema direita, que levou a país a romper com a política de multilateralismo e a um crescente isolamento no cenário internacional, e enfrenta agora o início de um processo de impeachment. E o país, a maior potência econômica e militar do planeta, corre o risco de ver reeleito o sujeito tosco, agressivo, imperial, no caso de os oposicionistas democratas escolherem um representante de suas alas mais à esquerda, os senadores Elizabeth Warren e Bernie Sanders, para concorrer nas eleições de 2020.
Aqui neste nosso país da periferia, das profundidades do Terceiro Mundo, já vamos começando a criar até mesmo uma certa tradição, dentro da nossa democracia de apenas tão ralos 34 aninhos: parecemos adorar extremos histéricos e jogar fora a racionalidade do centro democrático. Já estreamos assim nas primeiras eleições diretas para a Presidência da República após a ditadura militar de 1964: optamos por colocar no segundo turno os estilos inflamados, nervosos, ameaçadores, de Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, deixando em terceiro lugar o esquerdismo mais experiente de Leonel Brizola e o sopro inteligente, vigoroso da social-democracia de Mario Covas.
Repetimos a asneira agora há pouco, em outubro de 2018, quando largamos para trás uma boa quantidade de opções entre a centro-direita e a centro-esquerda – Geraldo Alckmin, Ciro Gomes, Marina Silva, Álvaro Dias, Henrique Meirelles, João Amoêdo – para ficarmos com Fernando Haddad e Jair Bolsonaro. Mais um poste daquele velho Lula de sempre e o tosco mais tosco que poderia haver, o adorador da ditadura militar, da tortura, das armas, o que odeia cultura, mulheres, ciência, civilização.
E agora, faltando 3 anos para as próximas eleições presidenciais, estamos mergulhados na campanha. Estamos esmagados pelos piores extremos. Aquele mesmo velho Lula de sempre e o Capitão das Trevas. O chefe da quadrilha responsável pelo maior esquema de corrupção da História do Brasil e o Capitão das Trevas, o defensor do retorno aos tempos da ditadura militar, da guerra fria, de antes da Idade Média.
Lula ajuda Bolsonaro, Bolsonaro ajuda Lula.
É claro, é óbvio.
Bons analistas mostram isso com a clareza da água da fonte.
“Lula está livre. E o presidente Jair Bolsonaro. deve ter comemorado no silêncio”, escreveu no domingo, 10/11, Mary Zaidan no Blog do Noblat, em texto reproduzido aqui neste espaço.
“Lula precisa de Bolsonaro para reanimar sua tropa e Bolsonaro usa Lula para reaglutinar o bolsonarismo”, sintetizou Eliane Cantanhêde em sua coluna no Estadão desta terça, 12/11.
Já o Brasil precisa urgentemente, desesperadamente, se livrar dessa maldição de ficar entre Lula e Bolsonaro, entre o quadrilheiro e o amigo das milícias.
O Brasil precisa urgentemente do centro.
É o que mostram três ótimos textos publicados hoje no Estadão e no Globo.
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Política aviltada
Editorial, Estadão, 12/11/2019
Estão em luta renhida no Brasil duas poderosas forças populistas, o lulo-petismo e o bolsonarismo, em busca de hegemonia – e, a julgar pelo linguajar e o comportamento dos protagonistas, pode-se antecipar que a política será ainda mais aviltada do que tem sido nos últimos anos.
O País nada tem a ganhar com isso. Ao contrário: ao se deixarem capturar por essas forças do atraso, aceitando como legítimos seus propósitos, os brasileiros podem pôr a perder todas as suadas conquistas que obtiveram desde o fim do regime militar, a começar pela própria democracia. Pois não é outro o objetivo dos brigões ora em confronto senão tornar irrespirável o ar político, abrindo caminho para a aceitação – ou mesmo o desejo – de soluções antidemocráticas.
É claro que não se deve esperar que o ambiente político seja asséptico, já que se trata, por definição, de um lugar de choque de ideias e, portanto, de tensão – e de luta pelo poder. Mas, se estamos em uma sociedade civilizada e se acreditamos nos valores da democracia, então é preciso exigir um mínimo de decoro dos que se entregam à atividade política. Não se trata apenas de boa educação ou polidez, que uns têm e outros não, e sim de respeito aos limites inscritos nas leis e regulados pelas instituições. Sem esses valores comuns, a política é simplesmente irrealizável, tornando muito mais difícil – talvez impossível – a superação pacífica e produtiva dos impasses da sociedade.
Nesse sentido, parece claro a esta altura que tanto o lulo-petismo como o bolsonarismo não têm a menor intenção de fazer política civilizada, pois isso significaria ter de transigir e eventualmente dividir o poder. Mais do que nunca, os líderes desses dois movimentos pretendem transformar o Brasil numa arena onde se digladiam, permanentemente, “nós” contra “eles”.
Enquanto o presidente da República, Jair Bolsonaro, inclui ruidosamente em seu grupo de “nós” aqueles que protagonizaram a barbárie nos porões do regime militar, o ex-presidente da República Lula da Silva, em um de seus discursos logo após deixar a cadeia, saiu a defender adolescentes infratores que enfrentam os rigores da lei “só porque roubaram um celular”. Nos dois casos, trata-se de relativização de comportamento criminoso, algo especialmente grave por partir de dois líderes que chegaram ao maior cargo político do Estado – ou seja, dois líderes que são vistos como modelo por parte considerável dos eleitores.
Nada disso é surpreendente, considerando-se que os bolsonaristas frequentemente flertam com a possibilidade de ruptura institucional, e os lulo-petistas não se cansam de qualificar criminosos condenados por corrupção como “guerreiros do povo brasileiro”. Esse é um dos aspectos mais preocupantes na escalada do embate entre o lulo-petismo e o bolsonarismo. A descrença no sistema político suscitada pelo discurso populista desses dois movimentos já é um fenômeno suficientemente grave, mas a valorização da delinquência como meio de conquista e manutenção do poder, se não for combatida imediata e resolutamente, levará a crise brasileira a outro patamar, muito mais trevoso que o atual.
Por esse motivo, urge dar ouvidos a vozes sensatas que vêm alertando para a necessidade cada vez mais evidente de reconstrução do centro político para que volte a ser uma alternativa eleitoralmente viável. Em artigo recente publicado no Estado, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi ao cerne do problema ao argumentar que “é do interesse da maioria existir um governo ativo e com rumo”, que seja “capaz de respeitar as regras do mercado, mas também os interesses e necessidades do povo” – e tais interesses “requerem ação política e ação da sociedade” para serem atendidos. FHC entende que essa ação seria o “miolo de um centro radicalmente democrático e economicamente responsável”, mas alerta que, “na vida política não basta ter ideias, é preciso que alguém as encarne”. Trata-se de uma convocação para que as forças democráticas deixem de lado divergências pontuais e se unam na tarefa de restabelecer a política como base do diálogo da sociedade consigo mesma. Como advertiu FHC, não há alternativa: “Ou aparece quem tenha competência para agir e falar em nome dos que mais precisam ou a esfinge nos devora”.
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Lula livre é bolsonarismo livre
Carlos Andreazza, O Globo, 12/11/2019
As tão famosas ADCs — que, afinal, resultaram em que só se possa cumprir pena depois do trânsito em julgado — estavam prontas a serem votadas desde dezembro 2017. Lula ainda não fora preso. Por covardia, porém, o Supremo — supondo poder se adiar para driblar o calor das ruas — permitiu que o que deveria ser uma deliberação impessoal relativa ao controle abstrato de constitucionalidade aos poucos se convertesse em veredicto fulanizado sobre o destino do ex-presidente.
Aqui estamos. O STF, temendo a impopularidade, quis fugir das ruas — e, com isso, só fez trazê-las para sua porta, por ora com tomates projetados contra as faces impressas dos ministros. Aqui estamos. Agora com o Parlamento pressionado a dar resposta por meio de emenda constitucional que se lance contra cláusula pétrea da Carta — do que decorreria veto do Supremo, choque entre Poderes e nova reação popular. O bolsonarismo agradecerá.
Aqui estamos. Novamente, a vida pública brasileira se orienta em função do ex-presidente. O STF, com medo da impopularidade de um julgamento cuja repercussão geral o beneficiasse, quis escapar das ruas — e às ruas ora entrega uma decisão impopular percebida como tomada especificamente em benefício de Lula.
O ex-presidente agradece. O bolsonarismo também.
Lula está solto; o STF, enfraquecido. O projeto de poder bolsonarista não saberia pedir presente melhor. Lula na rua, a manter o tom beligerante de suas primeiras declarações, a chamar um Chile de irresponsabilidade, é combustível para inflamar a ideia de novo AI-5. A mentalidade bolsonarista opera. Lula solto, por intermédio de um golpe desferido pelo establishment contra o desejo da população, projeta a desordem de que o bolsonarismo precisa para manter a tropa autocrática mobilizada. Lula solto é — para plena influência do imaginário bolsonarista — o Foro de São Paulo agindo.
Lula livre é bolsonarismo livre.
A polarização já encontrou a trilha para radicalizar. A depressão política em que o Brasil se encontra tende a se aprofundar. O tecido social se esgarçou desde há muito. Existe um ímpeto para a convulsão. Elegeu-se a convulsão. Já assim era no retrato — suprassumo da disfuncionalidade — do segundo turno de 2018: um autocrata contra o cavalo de um presidiário.
Não havia como dar certo. O país pagaria a conta. Pagará. O fetiche do liberal econômico não resiste a chão rachado como este. A instabilidade do terreno se agrava. À forja de crises artificiais com centro no próprio presidente da República, este multiplicador de inimigos, soma-se agora a fábrica de “nós contra eles” de um ex-presidente capaz de pregar que o atual governa para milicianos. É o vale-tudo. Não tem como dar certo. O país pagará a conta. Já paga. O megaleilão do pré-sal deu o recado. Vamos às vias de fato? Soco com mão de alface é soco do mesmo jeito. Alguma hora encaixa. A linguagem da violência já se encaixou. Tornou-se o normal. Nunca tantos psicopatas foram tão influentes no Brasil.
A tentativa de plantar aqui uma cultura plebiscitária prospera. Prosperou na Venezuela. É gente na rua. Dos dois lados. Todo mundo cheio de razão. As tribos vão se medir. Democrático, né? Sim. Democrático tanto quanto garantia de país paralisado. Que reforma econômica andará? Quem botará dinheiro aqui, senão para especular?
Advirto, contudo, que a campanha eleitoral não foi lançada. Para tanto, deveria ter acabado em algum momento. Nunca acabou. Bolsonarismo é campanha permanente. Lulopetismo, idem.
O ex-presidente ditará o ritmo. Ele sabe dançar essa dança. Já provou que não precisa estar elegível para — mais do que ser competitivo — escolher a música. Vai esticar a corda da beligerância — associando Bolsonaro às milícias, atacando o lavajatismo e batalhando pela anulação de suas condenações, com o que mira a credibilidade de Moro — e, ao mesmo tempo, tentar se mover para o centro falando em combate à desigualdade.
Não é difícil projetar como o bolsonarismo processará o presente que o Lula Livre oferta. O discurso já está na pista. Uma aposta no sentimento antilulopetista para reproduzir circunstância radicalizada como aquela de 2018: a de união dos virtuosos contra o mal que colocou outrora racionais para se cegarem ante o que o oportunismo bolsonarista encarna e sempre encarnou.
O investimento no adesismo incondicional vai escalar. “ Ou se fecha com Bolsonaro, ou a esquerda volta” — este é o texto. “Veja o que ocorreu na Argentina” — este, o exemplo. A adaptação superficial, para o Brasil, do que se passa na América do Sul não seria complicada. O roteiro está dado. Vem sendo ensaiado faz tempo. Lula solto é o gancho. É o gatilho para a mais perfeita teoria da conspiração. A ameaça está solta. José Dirceu também.
Não tem como dar certo.
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O desaparecimento do centro
Por Rubens Barbosa (*), Estadão, 12/11/2019
Com o desaparecimento do voto moderado de centro, a votação do referendo que aprovou a saída do país da União Europeia (UE) mudou radicalmente o cenário político no Reino Unido. A busca desse voto sempre teve muita influência nas eleições britânicas. As eleições deixaram de ser uma disputa entre a esquerda (Partido Trabalhista) e a direita (Partido Conservador) acima das diferenças ideológicas, econômicas e sociais. Quando as eleições são disputadas tendo como foco questões econômicas entre esquerda e direita, os partidos políticos podem escolher um ponto ao meio, mais moderado, e conquistar votos decisivos. Em contraposição, quando se trata de política de identidade ou questões que envolvam grandes reformas não há possibilidade de negociação. É mais fácil haver compromisso em questões econômicas, como impostos e salários, e muito mais difícil quando se trata de noções como soberania e papel do Estado.
Com a discussão sobre o Brexit como tópico principal da eleição britânica de 12 de dezembro, o voto de centro terá pouca influência pela polarização entre os que querem sair e os que querem permanecer na UE. Desapareceu o senso comum de que o partido que pudesse focalizar as preocupações do eleitor de centro poderia ganhar, enquanto que os partidos que buscassem os extremos seriam derrotados.
As posições moderadas de centro também estão desaparecendo em muitos países, tendo como pano de fundo a insatisfação da população com a crescente concentração de renda, a pobreza e a falta de oportunidades de emprego. Essa frustração se materializa em manifestações e confrontações em países como Líbano, Iraque e França, na cidade chinesa de Hong Kong e, na América do Sul, no Chile e na Bolívia. Essa reação não representa disputas entre os partidos de esquerda e direita por reformas sociais, mas a luta da população, sobretudo dos jovens sem liderança e sem coloração partidária, contra o establishment, ou seja, o governo da vez.
As situações descritas acima estão causando crescente instabilidade política, confrontações violentas e impasse institucional, sem perspectiva de solução pela ausência de negociações possíveis.
No caso do Brasil, nos últimos 20 anos a polarização ideológica começou com a ação política do “nós contra eles” e culminou com a campanha eleitoral de outubro passado. A eleição de 2018 foi um divisor de águas. Pela primeira vez na História recente do País surgiu, com sucesso, um candidato e um partido assumidamente de direita que disputaram a Presidência contra representantes da esquerda e de uma centro-esquerda fragmentada. O segundo turno, polarizado entre direita e esquerda, acentuou a divisão interna como nunca antes no País, refletindo, em parte, a crescente influência da mídia social. Diferentemente dos Estados Unidos, onde a divisão interna tem crescido nos últimos 30 anos e a insatisfação da população contra o governo desaguou na eleição de Donald Trump, o Brasil, com exceção da maior parte do período autoritário, sempre se caracterizou pela busca da conciliação e do entendimento entre as diferentes tendências políticas. Nos últimos anos, as visões ideológicas e populistas, que passaram a ter grande influência, e as crises políticas, sobretudo em 2016, com o impedimento da presidente Dilma Rousseff, fizeram que posições radicais de esquerda e de direita fossem gradualmente eliminando as percepções centristas mais moderadas. Pouco antes da eleição de outubro, para evitar os extremos, chegou a haver a tentativa de busca de uma terceira via, de centro, moderada, que não teve condição de prosperar.
A eleição de um presidente e a grande votação de um partido, ambos com uma agenda de direita conservadora nos costumes e liberal na economia, mudou o quadro político interno. Depois da eleição, fragilizada, com seu líder condenado e preso, a esquerda, desorganizada, estava sem efetiva capacidade de fazer oposição ao governo. Apesar disso, a narrativa das forças de direita continuou a insistir que esse grupo era o único que poderia ser uma ameaça à volta da esquerda e do comunismo e a tudo apostar na manutenção do clima de polarização política.
A decisão do STF sobre a prisão em segunda instância e a saída da prisão da principal liderança da oposição reforçam a retórica da polarização e da radicalização, justo no momento em que forças políticas começavam a articular a formação de um centro moderado. Evitando os extremos de direita e de esquerda, essa posição superaria os antagonismos radicais com uma agenda liberal na economia, preocupação com a desigualdade social, sem excessos nos costumes e com uma visão de mundo sem ideologia e sem alinhamentos automáticos, colocando o Brasil em primeiro lugar.
No novo cenário da política interna, a oposição, agora com um líder que em seus primeiros pronunciamentos se mostrou mais à esquerda do que até aqui esteve e promete percorrer o País para atacar as reformas e defender seu ideário ideológico, só tenderá a acirrar a contestação ao governo. À direita interessa essa radicalização para manter unidos e atuantes seus seguidores e para atrair parcelas do centro com a ameaça da volta da esquerda ao poder, como ocorreu na eleição presidencial.
O desaparecimento do centro – se vier a ocorrer – será um retrocesso e poderá acarretar, no limite, até a confrontação física entre os mais radicais de ambos os lados. A ampla agenda de reformas em discussão no Congresso e a perspectiva de crescimento da economia aconselham a busca de moderação para evitar a instabilidade política, que poderá ameaçar a volta do investimento e a redução do desemprego.
Com visão de futuro e buscando o fortalecimento das instituições, o Brasil deve espelhar-se em países onde no cenário interno convivem forças de todo o espectro político. A sociedade brasileira não tem alternativa senão buscar rapidamente a formação de um centro político forte que evite a polarização e o crescimento da radicalização, que possam pôr em risco a democracia.
Rubens Barbosa é presidente do Instituto de relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE).
12/11/2019