Tive meu primeiro som, som mesmo, de verdade, aos 23 anos de idade – e os primeiros discos que comprei para ouvir nele foram Peter, de 1971, o primeiro álbum solo de Peter Yarrow, que era solo mas tinha Paul e Mary cantando com ele, e Come From the Shadows, de 1972, o primeiro de Joan Baez para sua nova gravadora, a A&M.
Meu primeiro som foi um toca-discos BSR, inglês, um receiver LAB-40 da Gradiente, então uma marca que crescia no mercado e em termos de respeito, mais duas caixonas acústicas também Gradiente, gigantesconas.
Um belo som, vai?, para quem tinha 23 anos em 1973, e até então ouvia música em uma vitrolinha Philips de merda. Era meu quinto ano em São Paulo, a metrópole a que tinha chegado no início de 1968 com uma mão na frente e outra atrás. nenhum centavo em cada uma delas e nenhuma, none whatsover, perspectiva de emprego.
Na metade daquele ano de 1973, faria três anos de Jornal da Tarde, e, depois de dois anos trabalhando em troca de pagamentos de CDA, cessão de direitos autorais, sub-emprego, tinha sido finalmente contratado, num cargo nominalmente e salarialmente baixo, embora já trabalhasse como copy-desk, o que hoje seria chamado de redator. Baixo dentro da escala salarial do JT, o tal do ordenado era bem melhor, mas bem melhor do que eu ganhava até julho de 1970 na loja de ferramentas da Florêncio de Abreu da AVB Comercial, Agrícola e Industrial Ltda.
O salário já era tão bom que me permitiu sair do apartamento-república que dividia com dois amigos na Rua Aurora, em plena boca-do-lixo, a região da putaria, para morar sozinho em uma quitinete da Rua General Osório esquina com Avenida Rio Branco, igualmente em plena boca-do-lixo, a região da putaria, que mais tarde ficaria conhecida como Cracolândia. Era boca-do-lixo, mas era só meu – e era uma boa quitinete, num prédio novo, andar alto, vista interessante para a Rio Branco.
Já era tão bom o salário que pude comprar o toca-discos BSR, o receiver e as caixas acústicas Gradiente.
Tão bom, na verdade, que permitiu que Suely e eu nos casássemos em dezembro daquele ano de 1973, e nos mudássemos para um endereço muitíssimo melhor, a Bela Cintra com Costa, em Cerqueira César, onde viveríamos os primeiros anos juntos e faríamos Fernanda, nossa melhor obra. (A foto é da quitinete; Suely costumava estudar lá, na minha primeira mesa de trabalho.)
Pois é. Situei todo o contexto – mas eu queria mesmo era falar um tanto sobre o meu primeiro som e os dois primeiros discos que comprei para ouvir nele.
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É óbvio que não pensei em nada disso na época – mas, pensando neles agora, “revendo-os, agora”, como diria o Gil, me ocorre que há mais semelhanças entre Peter, de 1971, e Come From the Shadows, de 1972, do que poderia sonhar nossa vã filosofia.
São, os dois, é claro, discos de músicos folk que começaram nos anos 60, músicos filhos do folk dos anos 30 e 40 – que é e sempre foi a minha praia. Mas, além disso, são, os dois, discos de uma nova fase, Peter fazendo pela primeira vez um disco solo, Joan começando com uma nova gravadora, depois de uma década de tranquilidade no selo Vanguard.
São, os dois, discos com arranjos instrumentais maravilhosos – o que é fantástico, porque arranjos instrumentais eram novidades em suas carreiras. Os dois, Joan Baez e Peter Yarrow, haviam começado suas carreiras apenas com voz e violão.
Joan Baez, metida, presunçosa, tinha escrito, nas liner notes, os textos para a contracapa de seu álbum de estréia, Joan, de 1960, que se acompanhava com seu próprio violão – “minha única e fiel orquestra”.
Adoro ver bons artistas voltarem atrás, se contradizerem, mudarem de idéia. E então vivi felicidade plena ouvindo, no meu primeiro som, Joan Baez e Peter Yarrow fazendo um puta somzão, com um porrilhão de instrumentos além de seus fiéis violões acústicos.
E são, os dois, discos cheios de belíssimas canções, marcantes, fortes. “Take off your mask”, “Don’t ever take away my freedom” e “Weave me the Sunshine”, todas de Peter Yarrow, a primeira em parceria com M. McCarthy, são das melhores que há.
Come from the Shadows prosseguia a fase de Joan Baez autora, que tinha estourado com tudo no disco duplo Blessed Are, de 1971. O disco me impressionou demais, na época – e continuo ouvindo até hoje, no iPod, as canções “Prision Trilogy”, “Love song to a stranger” e “To Bobby”, composições dela, a última uma declaração de amor a Dylan-autor das músicas de protesto. E o disco tinha “The Partisan”, uma canção grega, que Leonard Cohen, que morou na Grécia um tempo, gravaria em 2010, em Songs from the Road.
Naquele tempo, como na maior parte da minha carreira de jornalista, trabalhava de noite. Ia para o jornal – a pé, é claro; eram uns 2 quilômetros, provavelmente, da General Osório até a Major Quedinho – no final da tarde, iniciozinho da noite. Trabalhávamos até de madrugada, e em geral tinha uma passada no bar, pra alguma cachaça, antes da volta para casa. Não consigo me lembrar, mas seguramente não voltava para casa a pé, atravessando boa parte da região central de São Paulo, e sim de táxi, ou alguma eventual carona.
Muitas vezes tomava mais uma cachaça em casa – ouvindo música, claro. Tenho quase certeza de que já havia comprado aqueles belíssimos fones de ouvido semiprofissionais que acompanharam minha vida durante muitos anos, e seguramente ouvi muitas vezes Peter, Come from the Shadows e diversos outros LPs que fui comprando ao longo de 1973 com os fones de ouvido. Mas tenho também a lembrança de deitar no chão da quiitinete da General Osório, a cabeça bem perto de uma das caixonas de som da Gradiente, para ouvir o somzão que então finalmente havia conseguido ter dentro de casa – e dormir ali o sono dos jovens justos, ou dos jovens bêbados, o que dá mais ou menos o mesmo.
Jamais perderia, ao longo das décadas seguintes, a deliciosa mania de dormir não propriamente na cama, mas no chão, ou em um cadeirão, ouvindo música.
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Para acomodar o primeiro som, e os livros que vinha juntando até então, comprei uma estante da Lundia Willo, linda, maravilhosa.
A estante da Lundia Willo, o toca-disco BSR, o receiver Lab 40 e as caixonas Gradiente foram todos levados para o apartamento da Bela Cintra, que herdamos mobiliado do Humberto Werneck e da Marisa, que, no final de 1973, mais ou menos na época em que Suely e eu nos casamos, se mudavam para Paris.
E foram todos eles levados – o meu primeiro som e a minha primeira estante Lundia Willo, mais os móveis todos deixados pelo casal Humberto e Marisa – para o apartamento da João Moura, que alugamos quando Suely estava grávida. No apartamento da Bela Cintra, delicioso, mas de um quarto só, a criatura que estava na barriga da Suely não caberia.
Foi daquele meu primeiro som que Fernanda bebê ouviu suas primeiras músicas, na João Moura. Muito Bob Dylan, muita Joan Baez, muito Peter, Paul and Mary, muito Chico, Caetano, Milton, Gil, Renato Teixeira, Fagner.
Quando saí da João Moura, levei só uma malinha de roupa. Foi muito tempo depois, quando finalmente passou o pior do pesadelo da separação, que Suely e eu conseguimos concordar em fazer uma divisão dos discos. O som é claro que ficou com ela e com Fernanda. A memória musical mais profunda da minha filha vem daquele toca-discos BSR.
Abril e maio de 2019
O Sérgio tinha em 1973 um SOM, graças ao gira-discos, ao amplificador-sintonizador e aos altifalantes. Eu não conheço as marcas mas deduzo que teriam qualidade. Agora tem um sonzinho pequenino graças a uma das várias bugigangas inventadas pelo Sr. Steve Jobs. Não creio que tenha tentado ouvir música sinfónica ou ópera através
daqueles minusculos auriculares.