O livro, velhinho, chama-se A Defesa da Poesia. Sublinhei-o linha a linha: há 50 anos, eu lia com as mãos por não me chegarem os olhos. O livro é de Percy Shelley. Vejam bem, há dois séculos, ao morrer, Shelley tinha menos de cem leitores.
Em vida, fora expulso de Oxford por escrever um panfletário louvor do ateísmo, embora me pareça que os censórios reitores, mais do que com as cócegas ao Todo Poderoso, se engasgaram com o veneno anti-monárquico desse Ensaio Poético do Estado das Coisas. Tivesse a ideia de Shelley triunfado e a Rainha Isabel II viveria hoje debaixo de uma ponte, de um lindo vão de escada.
Como é que um poeta que ninguém lia conquistou a imortalidade que em vida nunca cheirou? E quererá isso dizer que os laureados de hoje, os nossos Saramagos, serão os esquecidos de amanhã? Agora vejam, poderia lá alguém, com uma gárrula vida como a de Shelley, ter caído no esquecimento! Aos 19 anos, está já casado com uma menina de 16. Shelley passou por essa cama o tempo de engravidar a jovem mulher: o seu exaltado erotismo afastava-o da doçura do lar. Deixa a mulher grávida e viaja pela Europa com Mary Wollstonecraft e a meia-irmã dela, Claire, dando bom nome e despida roupagem ao torpe francesismo ménage à trois. Dormia com as duas. A mulher abandonada, Harriett, suicida-se nas águas nocturnas do Serpentine, o lago do Hyde Park, perante o olhar parvo dos patos que lá dormiam.
Já casado com Mary, Shelley repetiu com ela e a meia-irmã o périplo europeu, até Itália. Em Nápoles, a heterodoxia conjugal de Shelley obteve a forma de registo notarial: há uma cédula a assinalar o nascimento de uma filha, Elena. A mãe é uma misteriosa Marina Padurin, nome apócrifo que tanto pode esconder a maternidade de Claire, a meia-cunhada, como a da ama que os acompanhava. Portanto, eram já quatro na mesma cama. E eram ainda assim poucos, que a generosidade de Shelley era pan-amorosa. Queria que todos amassem: amou as suas muitas mulheres e instou-as a dormirem com os amigos.
Só tinha um ódio: os gatos. Atou um ao papagaio que lançou em noite de tempestade, na esperança de que um raio o electrocutasse. Ironia bizarra, Charles, filho da primeira mulher, morreu fulminado por um raio. E num jogo de sinistras coincidências, se a primeira mulher se suicidou nas águas do famigerado lago londrino, Shelley naufragou e afogou-se noutras águas, as do Mediterrâneo, essa infâmia dos nossos dias. Mary Shelley, sua segunda mulher e autora de Frankenstein, recolheu o corpo e incinerou-o. Quando ela morreu, descobriu-se que guardava, do marido, as cinzas e, inteiro, num lenço de seda, o coração.
Por escandaloso que o seu comportamento transgressor nos pareça, a poesia de Shelley foi e é sublime: Adonais é a mais bela das elegias, inspirada pela morte de Keats, poeta amigo. Shelley foi, também, o vigoroso campeão de um mundo novo governado por poetas: “Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo” grita ele, na última frase de Defesa da Poesia. Cada um tem as suas manias: Deus é defensor de um modelo social diferente e pôs-nos a viver num mundo em que os economistas são os únicos poetas: rimam quando entendem, correm-nos a verso livre, nos melhores dias um soneto.
Shelley era um anjo. E já se sabe que os anjos, na sua angelical compostura, são fonte de brutais dissabores. Queria que a sexualidade de mulheres e homens se libertasse das atávicas cordas que apertavam e esmagavam o que Shelley queria apertar com outra enternecida propriedade – nenhuma, bem entendido.
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.