Antônimos, opostos, antípodas

Gosto de antônimos, de palavras antípodas, de jogos de palavras que são o contrário de sinônimos.

Georges Moustaki adorava isso, assim como eu – a diferença é que a partir daí ele fazia poesia, bela poesia. Não canso de me chocar com a beleza da letra de “Je suis un autre”, por exemplo:

Je suis un débutant aux tempes qui blanchissent

Un beatnick vieillissant, patriarche novice

Jardinier libertin aux goûts d’aventurier

Voyageur immobile et rêveur éveillé

Je suis de ces lézards qui naissent fatigués

Un optimiste amer, un pessimiste gai

Un homme d’aujourd’hui à la barbe d’apôtre

Je peux être tout ça pourtant je suis un autre.”

Quanta imagem maravilhosa a partir de situações antônimas…

Debutante com os cabelos grisalhos, beatnik envelhecido, patriarca noviço, viajante imóvel, sonhador acordado, lagarto exausto, otimista amargo, pessimista alegre.

***

Hum… Na verdade, o que Moustaki fez em “Je suis un autre” é um belo jogo de palavras, sim, mas não exatamente com antônimos. É um jogo de palavras com figuras de linguagem opostas umas às outras. Opostas – o que a rigor não é sinônimo de antônimas.

Chico Buarque fez uma coleção maravilhosa, perfeita, emocionante, de idéias opostas, de contradições, de contestações da sabedoria popular em “Bom conselho”. Minha mãe, que passou a vida repetindo os ditos populares, seguramente diria que a letra de “Bom conselho” é sacrílega, é a negação tanto da doutrina cristã quanto da sabedoria do povo, vox populi, vox Dei.

Ouça um bom conselho

Que eu lhe dou de graça

Inútil dormir que a dor não passa

Espere sentado

Ou você se cansa

Está provado, quem espera nunca alcança

Venha, meu amigo

Deixe esse regaço

Brinque com meu fogo

Venha se queimar

Faça como eu digo

Faça como eu faço

Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo

Vim de não sei onde

Devagar é que não se vai longe

Eu semeio o vento

Na minha cidade

Vou pra rua e bebo a tempestade

Quem espera sempre alcança – espere sentado ou você se cansa.

Devagar se vai ao longe – devagar é que não se vai longe.

Quem brinca com fogo quer se queimar – brinque com meu fogo, venha se queimar.

Quem semeia vento colhe tempestade – eu semeio o vento, vou pra rua e bebo a tempestade.

***

Pensei em “Je suis un autre”, “Bom conselho” e outras maravilhosas canções que jogam com opostos hoje porque o iPod tocou “Heart with no companion” – e pela ducentésima-segunda vez babei com os versos de Leonard Cohen. As imagens que ele criou.

And I sing this for the captain whose ship has not been built,

For the mother in confusion, her cradle still unfilled.

For the heart with no companion, for the soul without a king.

For the prima ballerina who cannot dance to anything.

Meu, que absoluto deslumbre as imagens que o cara criou…

Um capitão cujo navio ainda não foi construído.

Uma mãe cujo berço ainda está vazio.

A prima ballertina que não consegue dançar absolutamente nada.

***

Leonard Cohen era, como Moustaki, fã das imagens dessa coisa de antônimos. Em “Bird on the wire” fez algumas das mais belas imagens que são opostas a outras imagens – imagens antípodas, antônimas.

Imagens que são o oposto de liberdade – e o narrador diz que quer ser livre como o que há naquelas imagens.

Um pássaro na gaiola. Um bêbado no coral da meia-noite. Uma minhoca no anzol. O mendigo que deseja pouco. A bela moça que quer mais e mais.

Like a bird on the wire

Like a drunk in a midnight choir

I have tried in my way to be free

Like a worm on a hook

Like a knight from some old-fashioned book

I have saved all my ribbons for thee

If I, if I have been unkind

I hope that you can just let it go by

If I, if I have been untrue

I hope you know it was never to you

For like a baby, stillborn

Like a beast with his horn

I have torn everyone who reached out for me

But I swear by this song

And by all that I have done wrong

I will make it all up to thee

I saw a beggar leaning on his wooden crutch

He said to me, “you must not ask for so much”

And a pretty woman leaning in her darkened door

She cried to me, “hey, why not ask for more?”

Oh, like a bird on the wire

Like a drunk in a midnight choir

I have tried in my way to be free

***

Um bêbado no coral da meia-noite.

Debutante com os cabelos grisalhos, beatnik envelhecido, patriarca noviço, viajante imóvel, sonhador acordado, otimista amargo, pessimista alegre.

Seriam essas imagens exemplos de oxímoros?

“Oxímoro, s. m. Engenhosa combinação de palavras ou frases contraditórias ou incongruentes, como por exemplo ‘silêncio barulhento’, ‘grito silencioso’.”, diz meu Dicionário Unesp do Português Contemporâneo.

Naturalmente, o Dicionário Sinônimos e Antônimos Houaiss não traz a palavra oxímoro. É uma maravilha de dicionário – mas das palavras mais usadas, e das que possuem antônimos claros, nítidos. Oxímoro não tem antônimo.

O Dicionário Sinônimos e Antônimos Houaiss tem, é claro, um verbete para antônimo. Claro, nitido: “Antônimo, s. m. Contrário, oposto. Antônimo: sinônimo.”

Um bêbado no coral da meia-noite é uma imagem de antônimos? Um capitão cujo navio ainda não foi construído é uma imagem da antítese de sinônimo? E a letra inteira de “Bom conselho”, além de um sacrilégio contra os ditos populares em que minha mãe acreditava, seria o quê, em termos de linguagem?

Sei lá se seriam antônimos, contrários, opostos, antípodas. Sei é que são uns puta versos do caralho. Pardon my French.

Ah, sim, pardon my French. Vamos lá: segundo a Wikipedia, “Pardon my French” or “Excuse my French” is a common English language phrase ostensibly disguising profanity as words from the French language.

Num momento de bom humor, Bob Dylan escreveu que love is a four-letter word. Four-letter word é uma das formas de se dizer “palavras profanas”, ou simplesmente, em Português bem dito, palavrão,

Provavelmente também num momento de bom humor, Joan Baez escreveu que, depois de fazer um balanço de seu passado, chegou à conclusão de que love is a pain in the ass. O que em Português escorreito seria o amor é um pé no saco. Claro que o saco não chega a ser propriamente um antônimo de ass, bunda, mas é quase.

O que levaria qualquer um a concluir que melhor que esse papo furado todo é ouvir as canções:

“Je suis un autre”, de e com Moustaki.

“Bom conselho”, de e com Chico Buarque. 

“Heart with no companion, de e com Leonard Cohen. 

“Bird on  wire”, de Leonard Cohen, com Rita Coolidge. 

“Love is just a four-letter word”, de Bob Dylan, com Joan Baez. 

“Love song to a stranger, Part II”, de e com Joan Baez. 

28/8/2019

Um comentário para “Antônimos, opostos, antípodas”

  1. Eu nunca prestei muita atenção às letras das canções, sempre me habituei a apreciar apenas a música. Sou fan dos Beatles, tenho todos os discos e apenas com a internet é que comecei a ler as letras das suas canções. Quando os discos saiam não traziam as letras.
    É pena, o defeito é meu.
    Dos exemplos que apresenta adoro a canção de
    Chico Buarque.
    E para acabar um exemplo de oxímoro:
    Amor é fogo que arde sem se ver;
    É ferida que dói, e não se sente;
    É um contentamento descontente;
    É dor que desatina sem doer.

    É um não querer mais que bem querer;
    É um andar solitário entre a gente;
    É nunca contentar-se de contente;
    É um cuidar que se ganha em se perder.

    É querer estar preso por vontade;
    É servir a quem vence, o vencedor;
    É ter com quem nos mata, lealdade.

    Mas como causar pode seu favor
    Nos corações humanos amizade,
    Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

    Luís Vaz de Camões

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