A viúva e as meninas

É nossa obrigação ajudarmos Mário Centeno introduzindo um mais rijo argumento no debate sobre o papel do Estado na dinamização de certas actividades económicas.

E calma, vamos por partes, que nem eu mesmo compreendo por que estou nesta alçada excitação. Do que quero falar é de Marthe Richard. Nasceu pobre e pobre cresceu, aprendiz de costureira. A vida dá muitas voltas, e em 1945, já a execrável tropa fandanga nazi tinha ido, e resumo, com o camandro, Marthe Richard incendiou Paris com uma causa: queria extinguir os bordéis legais, 180 em Paris, 1400 na França inteira. Fim à cruel exploração das prostitutas.

Vejamos, Marthe era uma heroína. Onde entrasse cantava-se a Marselhesa. Casou duas vezes, em nenhum dos casos com um ministro das finanças, e muito menos com um que fizesse das cativações o seu conto de fadas. Duas vezes viúva. Primeiro de Henri Richer, industrial abonado, morto em combate na I Grande Guerra; depois, do inglês Thomas Crompton, gestor de Fundação Rockfeller, que fez o favor de sucumbir, de uremia, dois anos após o enlace, deixando disposições testamentárias sumptuárias, que, sabendo-o, até eu casava com ele.

Viúva, Marthe levou uma vida que nem Pedro Santana Lopes nos tempos de exuberante lenço amarrado à testa. Reinou na noite e ganhou o cognome de viúva-alegre de França, legítimo repouso de quem, numa mistura de meias verdades com um quilométrico manto da fantasia, fora a primeira aviadora de França, na I Guerra, e a espia que rivalizara com Mata Hari. E mesmo na II Guerra, quando os boches conspurcaram a luz pura de Paris, Marthe seria e foi brava, fazendo rede com a Resistência.

Voltemos às meninas. Os deputados da República vergaram-se à faca da ideologia e da moral que Marthe lhes encostou à jugular. Muitos deles eram visitantes dos luxuosos conventilhos de lindas rameiras próximos da Assembleia Nacional. Recordo, pela deliciosa sugestividade onomatopaica do nome, o One Two Two, a que, ao menos para jantar, vinham o Aga Khan, o rei da Bélgica, Humphrey Bogart, Marlene Dietrich e Katharine Hepburn. O jantar era servido por jovens camareiras de saltos altos e uma camélia nos cabelos. Só. No One Two Two podia fazer-se a volta ao mundo: cada alcova tinha uma decoração típica, uma tenda índia, um iglu esquimó, um quarto do Oriente-Expresso, a réplica da câmara egípcia de Cleópatra. Havia ainda um bar, um refeitório exclusivo para as meninas e um gabinete médico.

Eis o que Marthe conseguiu, inapelável, fechar, resistindo à campanha que contra ela se montou. Dizia-se que às suas razões morais se juntaria aquela vontade de apagar da fotografia, como Estaline fez a Trotsky, um passado indesejável: tinha o seu nome inscrito, desde 1905, no registo nacional de prostitutas, surpreendida que fora, aos 16 inocentes aninhos, num quartel da prefeitura de Nancy.

Que pode Mário Centeno colher desta devota história? Antes de mais, o arrependimento de Marthe. Os deputados fecharam os bordéis e uma multidão de prostitutas encheu as ruas, o trottoir, expostas e sem cuidados médicos. Marthe viu a asneira e tentou reconstituir os bordéis, nacionalizando-os: as prostitutas, feitas quase assistentes sociais, passariam a funcionárias públicas. Eis uma inovadora dimensão para a função pública: a criação de bordéis, e por que não dos dois géneros, com valor social, em que, nas palavras de Marthe, prostitutas e prostitutos “tomem consciência da sua dignidade e do seu papel no Estado”. E, diga-se, com regaladas vantagens de cálculo para o PIB.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

Na foto do alto, Marthe Richard (na interpretação de Edwige Feuillère, em 1937). Nas menores,  a própria Marthe, antes de ser viúva.

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