A corda ao pescoço

A multidão exulta com a morte dos outros. Em Paris, na Place de Grêve, até ao século XVIII, a multidão festiva ululava por mais condenados. É daí, dessa multidão ociosa, desempregada e de mãos nos bolsos, que vem, em ínvia etimologia, a palavra greve. O último poeta que essa multidão gulosa e gourmet viu arder foi Claude Le Petit, condenado à fogueira, por ter escrito um voluptuosamente obsceno “Bordel das Musas”.

No sul, no infame e fascinante sul da América, a multidão de brancos vinha ver os enforcados negros, esses estranhos frutos pendurados das árvores, que a suave brisa balançava, e que Billie Holliday cantou, convertendo a dor em apelo sublime.

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Nunca tive cordas à volta do pescoço. Um dia, na adolescência luandense, ensaiava com o meu amigo Nelinho a defesa para um gancho da esquerda, mas ele veio-me com um uppercut que me apanhou a pecaminosa maçã de Adão. Cuspi Eva e cuspi fininho durante dois minutos que me souberam a angústia e a eternidade. Era isso que eu gostaria de contar, compreensivo e solidário, a John Babbacombe Lee, se tenho estado com ele a 23 de Fevereiro de 1885, quando a lei e ordem inglesas o iam enforcar.

John Lee olhar-me-ia com a mesma indiferença com que vexou o juiz que o condenou à morte na forca. Lee era um quebra-gelos de indiferença e isso deixou perplexo o juiz. John Lee, por uma vez, não foi parco em palavras: “Se estou calmo, é porque acredito em Deus e sei que estou inocente.” Olhai as aves dos céus, olhai os lírios do campo! Não cuida o Senhor deles, sem que precisem de semear e ceifar? Eis o que pensava o pré-enforcado John Lee, eis o que eu devia ter a coragem de pensar. Adiante.

John Lee já caminha ao lado do carrasco, o honesto cidadão James Berry. Chegam ao cadafalso e Berry pergunta ao condenado se tem uma última declaração. “Despache-se, abra lá o buraco”, corta cerce John Lee. Berry, meio enxofrado, puxa a alavanca. A plataforma devia abrir-se para que Lee caísse por ali abaixo até a corda prender e o brutal esticão lhe quebrar a cervical, provocando a fatal ruptura da espinal medula, e mandando assim o condenado para as profundas do inferno. Pois sim, não se sabe se foram as aves do céu ou os lírios do campo, mas a plataforma emperrou e John Lee não saiu do sítio: podemos até ouvir o burburinho de decepção da odiosa assistência.

Lee regressou à cela. Berry e os prestáveis ajudantes reviram todo o mecanismo, olearam, sopraram o grão que atravancava a engrenagem. Tudo perfeito. Era mesmo o melhor patíbulo que o Reino Unido da Grã-Bretanha já teve antes do Brexit. Foram buscar de novo John Lee.

Ele veio, com a mesma olímpica indiferença. Já não lhe pediram declarações, apertando-lhe logo a robusta corda à volta do pescoço. Um silêncio de John Cage (desculpem a referência culturalista) avassalou o pátio da prisão de Exeter, mesmo todo o condado de Devon. James Berry, carrasco conceituado, puxou a alavanca. E aqui eu tenho de pedir a Ginger Baker, o melhor baterista de sempre, que faça um rufo. Movo-me eu? Assim se imoveu a plataforma do fabuloso patíbulo. Os estrados de madeira ficaram trancados como se fossem de granito.

Acelero: Lee voltou terceira vez. Berry voltou a puxar a alavanca, mas a mão de um irónico Deus – ah, se Deus estava num daqueles dias! – de novo impediu que se espatifasse a espinal medula de Lee.  A lei inglesa é clara: após três tentativas falhadas proíbe-se a execução do condenado. Lee, acusado de matar à facada a sua velha patroa, foi condenado às delícias da prisão perpétua.

Da Página Negra, texto publicado no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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