Marina em modo inventar

“Você gesta a criança, amamenta, cuida com toda dedicação e carinho e aos cinco anos e meio ela te dá o apelido de KIBE. Pode uma coisa dessas? Ahahahahahah.”

Minha filha – bem ao contrário do pai – é uma pessoa discretíssima. Ciosa do direito inalienável de cada pessoa à privacidade. Manifesta-se pouquíssimo no Facebook. Isso torna bem especial a história acima, que ela postou ontem.

Como assim, “Kibe”?

Minha filha respondeu à minha pergunta no próprio Face:

“Ela tá com mania de dar apelidos comestíveis pras pessoas. ela agora só chama a Nina de Sopa. E agora eu sou kibe! ahahahahahah!”

Nina, a amiga-irmã, chamou esses apelidos de “engraçadez” e está dando “engraçadez” pras pessoas também. E então temos que mamãe é kibe, o papai é azeite, a Cau é pinha, a Marcela, a terceira mosqueteirinha, é tomate.

A gente ainda não tinha reparado nessa nova mania da Marina. Vovó e vovô ainda não têm apelidos de comida. Meu Deus, o que será que eu vou ser?

Mas o fato é que essa nova mania é mais uma manifestação da veia criativa da Marina – ou, se isso parecer muito pretensioso, da imaginação que a pequena bota para trabalhar. Livre leve solta.

A Marina que agora inventa apelidos comestíveis para as pessoas adora inventar.

Inventa histórias – faz tempo que anoto aqui nesta Agenda do Vô que a brincadeira predileta dela é criar histórias, fantasiar, fazer de conta.

Inventa músicas, canções. OK, todo mundo faz isso às vezes, mas ela adora – e pratica com uma assiduidade impressionante.

Inventa palavras. Inventa uma língua própria. Acho isso absolutamente sensacional.

OK, muita gente também faz isso – mas quando é minha neta que faz é absolutamente sensacional, uai.

E ela faz bonitinho demais. Já tem tempo.

Parece um pouco com o falso inglês de que falam Sá e Guarabyra na canção: “Uoooo uoraniussi uoriganfalanrier lefitiudeiomai, Uoooo uoraniussi uoriganfalanrier lefitiudeiomai, Um uoraniusi onaruei olefitiudei Wonder Woman Lairanidamudiseiomai”. Mas tem um pouco de falso alemão também. É engraçado e gostoso.

***

Sobretudo, além de falar em língua própria, ela inventa palavras. E isso também já faz tempo. Faz pelo menos um ano que deu nome ao velho Jimi, o hipopótamo grandão de pelúcia, de Érolti, por exemplo. Meses e meses atrás, deu nome ao carrinho de pilha que comprei pra ela de um camelô no Centro, perto da Biblioteca Mário de Andrade, de… Ih, diacho… Como era mesmo? Raysobah!

A grafia claro que sou eu que dou, com base na pronúncia dela, que é sempre puxada para o inglês, quando inventa nomes. Esse Ray é igual Ray Charles – de forma alguma com o Rei de Reinaldo. E Raysobah é proparoxítona, com beautiful, wonderful – Ráysobah.

Isso, claro, é resultado de ela ver os desenhos, ouvir os nomes dos personagens dos desenhos americanos. Adquiriu com rapidez a capacidade de falar o r do inglês, e de falar de maneira bastante correta os nomes dos personagens e lugares tipo Arendelle, Amber, Ryder, Chase, Marshall, Rocky, Skye.

Se a gente não fala corretamente, ela dá bronca, cara brava, séria, sisuda – como nem mesmo a mãe trata advogado insolente em audiência. Já me corrigiu duzentas vezes quando não pronuncio exatamente como ela quer o nome Amber.

Às vezes tem tanta certeza das coisas que me corrige quando falo certo. Por exemplo, não admite que a pronúncia de Ladybug seja a correta, leidibâg, ou ˈbəg, como indica o Webster em linguagem fonética. Fala: – “Não!”, com baita ponto de exclamação, olhando para mim com a tal cara brava, séria, sisuda, e aí fala um Ladybug incompreensível e distante do certo. Preciso aprender a trucá-la quando ela comete esse tipo de erro, mas sacumé, né? Pra que o avô vai ficar trucando a pequena, gente?

***

Na terça-feira agora, quando a pegamos na escola e ela estava trazendo a esculturinha ainda fresca que havia criado, disse que o nome dela era Xungra. Corri para anotar num papel – e, para manter a coisa da relação com o inglês, anotei Shungra. Achou engraçado: – “Por que você tá anotando, vovô?” Discursei um tanto sobre as células cinzentas, que as dela são novinhas de tudo e então gravam bem as coisas, mas que, quando vão ficando velhinhas, passam a ter imensa dificuldade para reter as informações.

Não cheguei a tentar recitar para ela que verba volant, scripta manent, mas ela mesma teve uma grande prova disso: duas horas de brincadeira depois, falamos de novo da escultura… E ela não se lembrava mais do nome que havia criado!

Aí fui até o papel em que tinha anotado a palavra Shungra.

Verba volant, scripta manent – e é bem por isso que faço esta Agenda do Vô.

9/11/2018

Nas ilustrações, pela ordem, Amber, LadyBug e a Shungra. 

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