Lauro Machado Coelho: cultura e integridade

Quando adolescente, em Belo Horizonte, ele tinha a fama de chegar às reuniões de um cineclube com um exemplar do Cahiers du Cinéma debaixo do braço. Isso na década de 60, numa cidade ainda bastante interiorana. Discutia as tendências da Nouvelle Vague, falava sobre qualquer diretor de vanguarda…

Conheci Lauro Augusto Machado Coelho na Aliança Francesa, onde ele dava aulas de Literatura. Eu tinha uns 18, 19 anos e ele 27 ou 28. Recebia um salário bem menor que o dos franceses, mas merecia deles frases como: “Il a tout lu” (ele leu tudo).

Como aluno, na primeira vez que me meti a fazer crítica de um filme, perguntei o que ele achava. A crítica foi demolidora, me senti como um ser inferior. Mas foi o início de uma amizade que atravessou muitas décadas.

Aos poucos, começamos a reunir um grupo na casa dele, após as aulas. Bebidas baratas, pois ninguém tinha muito dinheiro. E muita conversa sobre literatura, de qualquer país. Foi ali que ouvi falar dos contos de Edgar Allan Poe, de Ernst Hoffmann, do delicioso trabalho de Rabelais…

Lauro não fazia qualquer exercício físico, só intelectual, e por isso engordava bastante. Era o prenúncio de graves problemas que viriam depois.

Algumas marcas de sua personalidade eram a generosidade, a “memória de elefante” (como ele mesmo dizia), a retidão de caráter e um fino senso de humor.

Sentindo que Belo Horizonte se tornara pequena, ele foi para São Paulo. Trabalhou na editoria de Internacional e foi crítico de cinema, no Jornal da Tarde. Depois ficou uns 20 anos na Editora Abril, produzindo o Almanaque Abril.

Nesse período também me mudei para São Paulo. Ele me chamou para produzir textos sobre países para o Almanaque. Fiz isso durante alguns anos, curtindo um trabalho mais elaborado que o jornalismo diário (no Almanaque, Lauro podia fazer textos sobre história do Brasil, política nacional, política internacional..).

Mas aos poucos os responsáveis pela publicação foram descobrindo, através de pesquisas, que precisavam reduzir o tamanho dos textos, fazer muitos infográficos, deixar mais espaços nas páginas, pois as gerações mais novas queriam informações rápidas e bem ilustradas.

O estilo enciclopédico do Lauro foi se tornando obsoleto e ele acabou demitido.

Começou então um período de decadência financeira e de saúde.

De um apartamento maior, ele passou para um menor (mas ainda com três quartos). Tinha dois filhos: um natural e um adotado. Já separado, vivia com o adotado enquanto o outro ficava com a mãe.

Uma vez fui visitá-lo e notei que várias portas da casa estavam trancadas. Perguntei por que e ele disse que o garoto poderia roubar coisas para comprar drogas…Segundo ele, o jovem não estudava, estava andando com péssimas companhias e ele se preocupava muito com o futuro do menino.

Nessa fase, Lauro se dedicou mais à sua grande paixão: a ópera. Foi coordenador dos corpos estáveis do Teatro Municipal de São Paulo. Depois foi crítico da revista Época e de O Estado de S. Paulo. Foi também apresentador da Rádio Cultura FM. Trabalhou nas revistas Concerto e Bravo. Lançou a coleção História da Ópera, com mais de 10 volumes sobre o gênero em períodos e países distintos. Também o livro Shostakovich: Vida, Música e Tempo. E volumes dedicados a Liszt, Bartók, Bruckner e Sibelius.

Uma vez escrevi um livro chamado O Colapso do Império Soviético. A editora assinou o contrato comigo, reviu o texto e, quando tudo estava pronto, disse que iria aguardar para publicar pois haviam acabado de lançar uma obra sobre o mesmo assunto, em outra coleção. E quem era o autor? Ele mesmo…

Era impressionante a quantidade de áreas sobre as quais Lauro escrevia. Além das já mencionadas, ele traduziu poemas da russa Anna Akhmatova e escreveu o livro Anna: a Voz da Rússia.

Saí de São Paulo e fui morar primeiro na Bahia, depois em Brasília. Mas, toda vez que voltava a Sampa, eu o procurava. O ritual era: primeiro eu almoçava com uma antiga professora de francês da época do curso ginasial, Vivina de Assis Viana, e depois nós dois íamos visitar o Lauro.

Um dia fui achá-lo morando de favor no apartamento de uma amiga. Já não tinha dinheiro para manter a moradia anterior e nem o filho em casa. Morava num espaço reduzido, cercado por milhares de livros, discos e CDs. E enfrentava graves problemas: era diabético e teve uma crise de erizipela. Nessas circunstâncias a erizipela não cicatriza e ele teve que cortar metade de um pé. Os cuidados de uma enfermeira eram essenciais.

Houve um ano em que chegamos ao apartamento e ninguém era capaz de dizer onde o Lauro estava. Havia se mudado mas não sabiam para onde. Só bastante tempo depois descobrimos que ele havia sido colocado numa casa de repouso, pois não tinha mais condições de viver sozinho (e isso antes dos 70 anos de idade…).

Quando o encontrei, perguntei como estava. Ele se queixou muito do local, do atendimento, me mostrou marcas no braço dizendo que eram causadas por beliscões de enfermeiras…

Vi que ele só tinha acesso a uns poucos canais abertos de TV. No início havia um computador, mas depois parou de funcionar e ele ficou sem um.

Eu e Vivina nos acostumamos a almoçar (tinha que ser no restaurante Famiglia Mancini) e em seguida ir a um sebo, para comprar uns livros em inglês ou francês para o Lauro. Era uma forma de mantê-lo ligado à sua prodigiosa capacidade intelectual, já que ele estava num local que não fornecia estímulos à cultura e à erudição.

Um ano demoramos muito para chegar à casa de repouso e ele já estava no quarto, por volta das 17:30. Nos levaram lá, conversamos por cinco minutos e ele nos pediu que fôssemos embora.

Estupefatos, eu e Vivina tentávamos entender aquela atitude. Afinal de contas, era a nossa visita anual, a única possível…

No ano seguinte, resolvi mudar de tática. Disse à Vivina que talvez o Lauro ficasse incomodado com as minhas perguntas sobre a situação dele (as respostas eram sempre azedas). E talvez por isso tenha nos “enxotado”. Ou talvez não quisesse que o víssemos em seu quarto, já quase preparado para jantar e dormir (tudo é feito muito cedo nesses locais).

Quando o procurei, ele já estava em outra casa de repouso. Consegui localizá-lo, fomos lá e passei um bom tempo falando de uma viagem que fiz a Israel. Isso o entreteve bastante, passamos boas horas conversando.

Dois meses atrás, voltei (desta vez a Vivina não pôde ir). Tomei um susto quando o encontrei, pois ele já tinha perdido vários dentes (o processo vinha de antes, mas tinha se acelerado).

Ele me mostrou entusiasmado um texto que tinha publicado, com as notas de programa para a montagem de uma opereta (um ex-companheiro de trabalho o tinha levado à casa dele e Lauro pôde desenvolver o trabalho no computador do amigo).

Falei sobre uma viagem que fiz à Escandinávia e ele ouviu atentamente.

Perguntei sobre os filhos, e ele disse que o adotado, que dava tantos problemas, parecia ter endireitado. Estava trabalhando (acho que com gastronomia), foi visitá-lo e apresentou netinhos…

E o outro, que era “normal” e tinha se formado num curso universitário? O tinha procurado? “Não, nunca veio.” O motivo? “Não sei. Mas espero que ele um dia se lembre que tem um pai…”.

Duas semanas atrás, a Vivina me mandou um necrológio da Folha de S. Paulo: “ A consciência crítica da ópera no Brasil calou-se.”

Tomei um susto, a tristeza baixou e vieram à mente todos esses anos de convivência e de carinho não explícito entre nós.

Mandei uma mensagem à Vivina: “As visitas a São Paulo ficarão mais vazias”.

A resposta: “Sem visitas aos sebos e sem conversas sobre viagens…”

Fevereiro de 2018

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