Enquanto montava, na noite de sábado, o álbum número 3 de Marina no cadeirão, com Mary aqui ao lado, música, uísque e cerveja rolando, dei uma viajadinha até a lua e quase não voltei. Visitei histórias antigas e acho que cheguei perto da sétima morada da felicidade.
Me lembrei de quando a mãe da Marina e eu passamos uns dias em Visconde de Mauá, na verdade em Maringá. Fêzinha estava com 10 anos, e era uma criança extraordinária, maravilhosa, suave, doce, exatamente como viria a ser a filha dela. Caminhávamos longamente, fazíamos piada, ríamos. À noite, na pousada em que ficamos, junto do pequeno rio que faz a divisa entre Rio e Minas, trabalhávamos na execução do que eu dizia que seria o definitivo álbum de fotos dela.
Tinha foto demais dela. Eu ampliava as fotos com a ajuda dos amigos do laboratório fotográfico do Estadão, e então, quando em geral as pessoas tinham fotos pequenas, tipo 10 x 15 de suas crianças, eu tinha uma quantidade industrial de fotos de Fêzinha, desde o nascimento, em belas, grandes ampliações acho que de 20 x 25. Para aqueles dias de férias com a filhota, levei um pacotão de fotos e um grande álbum, imaginando que ela gostaria de escolher comigo as melhores, fazer a edição das fotos do álbum definitivo.
E ela de fato adorou. Interessante: Fê tinha uma admiração incrível pelo conceito de “definitivo”. Me lembro que ela curtiu demais ficar à noite, diante de uma mesa na pousada, escolhendo junto com o paiê dela as fotos que iriam para o álbum. Passamos muitas, muitas horas deliciosas nisso. O álbum foi ficando um tanto desgastado, com o passar o tempo, mas Suely, a mãe da minha filha, sempre cuidou bem dele.
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Enquanto montava o álbum número 3 de Marina às vésperas do aniversário de 4 anos dela, a Rádio Sérgio Vaz aqui do iTunes tocou Paulinho da Viola cantando “Comprimido”, o que me deu vontade de ouvir Olivia Byington cantando “Por Dentro das Canções”, uma música extraordinária que ela compôs para letra do português Tiago Torres da Silva, uma letra fantástica que fala de canções, cantores e compositores brasileiros, de chorar de tão bela.
Uma beleza puxa outra, e de repente me peguei ouvindo Tetê. Não ouço sempre Tetê, e acho que de fato não é alguém para a gente ouvir sempre – mas, diacho, como é maravilhosa Tetê. Botei “Cunhataiporã” e “Vida Cigana”, e é claro que estava me lembrando dos tempos em que levava a mãe de Marina para ouvir Tetê, e não só no Lira Paulistana, que ficava a uma quadra e meia da casa que era nossa e ficou sendo da mãe e dela quando fui embora, mas também, numa pré véspera de Natal, no Teatro Municipal, numa noite em que ela cantou sem microfone algum, totalmente voz pura diante da imensidão do teatro lírico, e eu e Fêzinha nos sentamos na quarta fileira, no gargarejo, tão perto dela quanto no pequetito Lira. Amigos meus me gozavam, diziam que eu torturava minha filha levando-a para os shows da Tetê.
Não me lembro exatamente quantos anos Fêzinha tinha quando a levei para o Municipal para ouvir Tetê. Mas sei que ela tinha dez anos quando a levei ao Cine Astor, no Conjunto Nacional, onde hoje funciona a maior loja da Livraria Cultura, para ver Passagem para a Índia, de David Lean – para depois ter que ouvir dos amigos que eu torturava minha filha.
Posso dizer hoje, com absoluta tranquilidade, que ter submetido minha filha de dez anos às 2h44 minutos daquele complexo drama sobre as culpas do colonialismo britânico não causou trauma algum nela. Até porque, três anos mais tarde, com apenas 13 de idade, minha filha soube compreender perfeitamente o horror do apartheid mostrado em Um Grito de Liberdade/Cry Freedom, e, quando o filme terminou, no maravilhoso Cine Comodoro da Avenida São João, ela chorava sofregamente de tristeza e indignação.
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Montar o álbum de fotos de Marina dura bastante tempo, e rolou um monte de músicas. De repente, tocou “Katie’s song”, a canção que Paul Simon gravou quando tinha 24 anos – e então fui atrás, e Mary e ouvimos umas cinco versões diferentes de “Katie’s Song”.
Confesso que xinguei tanto Paul Simon quanto Art Garfunkel com aquela exclamação de “filhos da puta” que a ex-mulher de Joe Gideon não consegue reprimir ao ouvir os diálogos inteligentes demais que ele havia escrito para seu novo show da Broadway, em All That Jazz. Diante de uma manifestação de absoluta genialidade, só resta a nós, pobres mortais, exclamar: “Mas que filho da puta!” O uso do palavrão é só para expressar imensa admiração – exatamente como Audrey, a ex-mulher de Joe Gideon, interpretada por Leland Palmer, faz em All That Jazz.
Na noite seguinte, domingo, li no Facebook um post de uma pessoa se queixando das letras de funk que tem ouvido pessoas cantando perto da casa dele. Coisas assim chamando as mulheres de cachorras, tesudas, sei lá bem o quê. E aí pensei que horror é Marina crescer neste tempo de funk e hip hop e rap.
Mas que besteira pensar isso. Música boa sempre haverá, criada e divulgada ao lado de música muito, muito ruim.
A pequena sempre vai gostar da música boa.
Tem atrás dela legião de gente de bom gosto: o pai, a mãe, este avô aqui, a avó ali, a Abuelita, os avós tios, até a Bisa. A avó de sangue que ela não conheceu, uma doutora em MPB.
Já demonstra imenso bom gosto musical. Não tem erro.
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No domingo, depois da pizza aqui em casa, apresentei para o papai e a mamãe de Marina (é assim que ela os chama, bonitinho demais: o meu papai, a minha mamãe) o álbum número 3. Marina ficou extremamente dividida: olhar todas aquelas 200 fotos era de fato cansativo, e ela pediu para sair da mesa e ir brincar, e ficou brincando de cortar papel comigo. Mas aí ela ouvia a mãe se referir a alguma coisa que rolava no álbum, e dizia: – “Quero ver!” Acabamos a convencendo de que seria melhor continuar cortando papel, mas pertinho do álbum que mamãe e papai viam pela primeira vez.
Nesta terça-feira, fomos vê-la na hora de sempre das nossas idas à casa dela durante a semana, iniciozinho da noite. Em geral chegamos quando ela está jantando; faço um bando de fotos, e aí a gente brinca, e depois tem a hora do DVD, que é em geral a hora em que minha filha chega do trabalho.
Levamos nosso presente de aniversário (não teria sentido entregar na festa, no sábado que vem) e, de presente para a mamãe e o papai dela, o volume deles do álbum número 3.
Quando ela se sentou para jantar, disse pra ela: – “Marina, estas fotos que o vovó vai fazer hoje, no seu último dia de 3 anos de idade, vão ser as primeiras do seu álbum número 4.”
Mostrei o álbum pra Cau, e, quando ela começou a ver e comentar as fotos, Marina ficou indócil, querendo ver também. O jeito foi a Cau sentar-se ao lado de Marina e da avó, folheando o álbum enquanto a pequena jantava olhando para o álbum.
Como diria a mãe dela, mór delícia.
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Tenho um danado de um orgulho desse trabalho, desses álbuns – 600 fotos da criaturinha sempre no mesmo lugar, o cadeirão da cozinha da casa dela, durante o jantar. Distribuídas em três álbuns de fotos, fotos de papel, ampliadas em laboratório fotográfico.
Álbum de papel, fotos de papel. Suporte físico, essa coisa antiga, dinossáurica.
Fico imaginando o que Marina pensará dessa trolha daqui a 20 anos.
Talvez olhe para os três álbuns e pense: tsc, tsc, a vovó era palhacinha e era a maior delícia, e o vovô parecia bobinho mas na verdade era muito doidão.
Ou talvez não. Talvez venha a curtir bem ter esses álbuns, esses suportes físicos, numa era em que suporte físico não estará com absolutamente nada.
Um conjunto de 600 fotos ao longo de um período de três anos e tanto da mesma pessoa no mesmo lugar já é algo muito raro. Em suporte físico, então – e não para ser visto numa tela –, é estupidamente raro, e será cada vez mais.
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De qualquer forma, por mais que eu curta esse trabalho, ele é o de menos.
O bom é Marina existir.
Minha filha tinha perdido sorriso e felicidade quando a mãe foi embora. Quatro anos atrás, quando nasceu a filha dela, minha filha voltou a sorrir, a ser feliz.
A pequena trouxe a alegria de volta à mãe e espalhou alegria por todo mundo das famílias, dos dois lados.
Criatura linda.
Ahnnn! Parabéns para ela e para todos nós!
15 de março de 2017
Meu texto ficou pequeno demais mesmo para uma amostra mínima, ridiculamente mínima de fotos do álbum. E então as fotos prosseguem.
Ainda bem existe Marina.
Sempre nos lembrar, que a vida é caminhar.
Viva a Marina!!
Quase não dá para acreditar que 4 anos já se passaram.
Muito legal ver algumas das fotos aqui, o crescimento (e as carinhas) dela ao longo desses anos.
Acho que ela vai curtir ver as fotos mais tarde sim, até porque fotografias que não são reveladas tendem a se perder. E como é tendência que o antigo retorne, quiçá fotos impressas voltem a fazer sucesso (vide os LPs). Sem falar que deve ser bem interessante ver o próprio crescimento e mudança durante um, dois ou mais anos.
Eu me ressinto um pouco por ter pouquíssimas fotos da minha primeira infância. Vacas magras, fazer o quê… E quando minha mãe contratava fotógrafo para alguma ocasião especial, por algum motivo não dava certo. Ê, vida! Não sei se foi por isso, mas desde que tive acesso às câmeras peguei gosto por fotografar. Adorava aquelas máquinas “Love”, de qualidade terrível e descartáveis. E modéstia à parte, hoje fotografo muito bem, obrigada.
Parabéns, linda e doce Marina! Você é uma graça. As duas – aliás muito parecidas – mãe e filha, são encantadoras. O avô também merece os parabéns pela ideia genial. Marina vai amar esses álbuns quando crescer. E os filhos dela então? É alegria para muitas gerações!
Ah, esqueci de falar (a idade chega para todos) sobre a Tetê , que pelas músicas citadas só pode ser a Espíndola.
Minha preferida é essa: Chapada <3
https://www.youtube.com/watch?v=-iQiwf9lusc
E sobre músicas ruins, elas sempre vão existir mesmo. Vai muito da criação sim, mas vai do gosto também. Eu tive sorte de ter crescido ouvindo boas músicas (mas ouvi muita tranqueira dos anos 80 também, no rádio, e hoje dou risada quando lembro das pérolas), porém tenho minhas dúvidas se é só isso que conta. Penso que não. Acredito que para gostar de boa música é preciso inteligência emocional, pois ao contrário do que se diz, a música não está ligada somente a sentimentos.
Esses tempos descobri no YouTube, através do Twitter, um disco que era da minha mãe (ou do meu pai), e ouvíamos aos domingos. "Poly e seu Conjunto Moendo Café". Ahh, como a internet consegue ser maravilhosa!!! (Me lembro daqueles bolachões em cima da cama, e gente, não sinto a me-nor saudade de ouvir LP. Não sei como vocês hipsters curtem isso). Além desse disco, tinha muita música clássica, Roberto Carlos (desse nunca consegui gostar) etc. Afora as músicas e marchinhas de carnaval que meu pai cantarolava, sempre desafinado; apenas trechos, nunca inteiras.
Enfim, com pais, avós, e tanta gente de bom gosto em volta, além da sensibilidade que ela demonstra, concordo que Marina já está indo pelo bom caminho musical.