Pode-se indagar se a rápida passagem do senador José Serra no Ministério das Relações Exteriores deixou um legado para o seu sucessor. A resposta é sim, se for considerada a brutal inflexão da política externa brasileira sob seu comando, quando comparada à política terceiro-mundista e ideologizada da era do lulo-petismo.
Serra não criou uma nova concepção de política externa. Apenas resgatou os pilares da diplomacia brasileira vigentes desde os tempos de Rio Branco. E isso fez toda diferença.
A política diplomática construída pelo Itamaraty ao longo do tempo sempre teve como norte a defesa dos interesses nacionais e a observância dos princípios da autodeterminação dos povos, da não-intervenção, da defesa da democracia e dos direitos humanos.
Nela, não havia espaço para alinhamentos automáticos ditados por afinidades ideológicas. Observados os princípios consagrados pelo concerto mundial das nações, valia o pragmatismo responsável com vistas a alcançar os melhores resultados para o Brasil.
Ao longo de nossa história, praticamente não houve descontinuidade desses ditames. Mesmo no regime militar eles foram observados, particularmente no período Azeredo da Silveira, quando o Itamaraty deu provas de sua maestria.
A política permanente de Estado construída por sucessivos governos foi capturada quando o lulo-petismo chegou ao poder.
Deixou de ser de Estado para ser de um partido, orientada por critérios e afinidades ideológicas. Instalou-se um dualismo na política externa, com “áreas de influência” sendo divididas entre o então chanceler Celso Amorim e o assessor especial da presidência, Marco Aurélio Garcia.
A priorização das relações com os países bolivarianos levou o Brasil a perder densidade, a se isolar nas relações comerciais, ficando praticamente confinado a um Mercosul ideologizado e de costas para o restante do planeta.
Paulatinamente o Itamaraty foi perdendo densidade, até ficar, literalmente, entregue às baratas nos anos abúlicos da presidente deposta Dilma Rousseff, sem recursos para fazer frente aos mais comezinhos custeios.
O ponto de inflexão efetivada no governo Michel Temer foi devolver ao Itamaraty o papel de formulador da política externa, de articulador das ações internacionais do Brasil. O Ministério do Exterior deixou de ter um papel subalterno voltando à posição de protagonista da política externa.
A maior mudança foi no foco. Com a descontaminação ideológica da política externa, sua centralidade passou a ser a busca de uma maior inserção do Brasil na economia mundial por meio de acordos voltados para a abertura de novos mercados para produtos e serviços brasileiros.
A guinada se dá em uma conjuntura de transição e tensão nas relações da economia mundial, face às incertezas geradas pela eleição de Donald Trump. O pragmatismo responsável volta a se colocar na ordem do dia, para o Brasil fazer valer seus interesses e saber se beneficiar da onda protecionista.
Essa onda, iniciada na Europa com a vitória do Brexit na Grã-Bretanha, pode mudar de patamar se a nacional-populista de direita Marine Le Pen vencer as eleições francesas.
O novo quadro afetará o desenho dos blocos econômicos e a geografia da economia mundial, com a Ásia – e principalmente a China – sendo a estrela ascendente, e os Estados Unidos cadente, caso Trump efetive seu programa.
O Itamaraty entendeu os novos tempos, soube se deslocar em todas as direções, sem excluir qualquer possibilidade de parceria. O redesenho do Mercosul, a aproximação com a Aliança do Pacífico (México, Chile, Colômbia e Peru) e com a União Europeia, a busca de acordos bilaterais com Trump, os oito acordos assinados com a China, são lances de um jogo multifacetado que vai do Sul-Sul ao Sul-Norte, Sul-Leste, Sul-Oeste.
Nele, sairão vencedores os países de política externa calcada em três virtudes: pragmatismo, pragmatismo e pragmatismo. Serra mais do que compreendeu as regras do jogo, fez a diplomacia brasileira voltar ao seu leito natural.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 1º/3/2017.