Simpatizantes de Donald Trump – os que admitem abertamente, e também os mais envergonhados – vão seguramente dizer, como já começaram a dizer tão logo foi encerrada a 89ª festa de entrega dos Oscars, na madrugada desta segunda-feira, que Hollywood resolveu fazer discursos, comícios, em vez de show, e por isso deu aquele vexame histórico, nunca visto antes.
E é preciso admitir que, ao protagonizar aquela trapalhada grotesca, anunciando que o maior prêmio de todos, o de melhor filme, ia para La La Land, quando na verdade o vencedor era Moonlight, o casal Bonnie & Clyde empanou o brilho de uma festa que até ali estava gostosa, divertida, bem ensaiada, bem encenada, ágil – e contundente nas críticas ao presidente que tem atacado com virulência alguns dos alicerces básicos do sistema democrático, a começar pela imprensa livre.
A besteira cometida pela Bonnie do marcante filme de Arthur Penn que está comemorando meio século, Faye Dunaway, que mal olhou o cartão que Clyde, ou melhor, Warren Beatty, segurava, e disse apressadamente La La Land, sem dúvida deu munição para as críticas de trumpistas – os assumidos e os meio ou totalmente envergonhados –, assim como para os conservadores de todos os matizes. Todos eles ganharam um argumento para reclamar do tom político da cerimônia deste ano, de Hollywood, e de, maneira ampla, geral e irrestrita, de qualquer tipo de manifestação que vá contra seus próprios valores.
Deu corda ao discurso tipo “esse povo tem é que fazer show e só, e pronto, não tem nada que ficar dando opinião sobre política”.
O discurso tipo “arte não tem nada a ver com política”.
O discurso tipo “artista tem que ser só artista, não tem que falar de política”.
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Uma discussão mais velha que andar pra frente – embora haja tanta gente que insiste em que devemos caminhar para trás.
Parece que ultimamente eles estão mais numerosos, ou no mínimo menos silenciosos – ou as duas coisas, credo em cruz, vade retro, satanás.
Arte é política. Qualquer canção, cada pequeno conto de 3 páginas, cada movimento de um dançarino em um palco é afirmação política.
O que dirá um filme. O cinema é a arte mais coletiva que existe. Quem falou que cinema é uma câmara na mão e uma idéia na cabeça é um poeta em momento de profundo devaneio. Cinema é indústria – mesmo o filme mais barato que há, como o próprio Moonlight, o vencedor do principal Oscar 2017, custou pouquíssimo mas envolveu dezenas e dezenas de profissionais.
Hollywood sempre foi política. Hollywood foi construída pelos empresários mais visionários de sua época, muitos deles judeus de diversas origens, e pelos artistas e artesãos mais talentosos, mais competentes, mais ousados, vindos de todas as partes do mundo, que tinham como denominador comum o gosto pela liberdade, pelo avanço dos costumes, pela não eternização dos mesmos dogmas que moldavam a sociedade conservadora, careta, retrógada.
Hollywood sempre esteve muito à frente dos modos e dos comportamentos aprovados pela maioria conservadora, a que se dizia silenciosa, e nos últimos anos tem falado pelos cotovelos.
Sempre foi vanguarda, vários passos muito adiante que a maioria.
Frankly, my dear, Hollywood never gave a damn para os conservadores, os retrógados, os caretas.
Para cada republicano ferrenho tipo John Wayne sempre houve dúzias de democratas muito mais para George McGovern do que para John Connally, ou, se o exemplo parece muito antigo, muito mais para Barry Sanders do que para Hillary Clinton.
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Cinema é política, Hollywood é política, e é uma antiga tradição haver manifestações políticas nas cerimônias de entrega dos prêmios da Academia.
Os trumpistas que reclamam que a deste ano foi “comício” ou têm Alzheimer ou são portadores de ignorância congênita ou profunda má-fé, porque o Oscar sempre foi político.
Em 1973, Marlon Brando mandou uma atriz fantasiada de índia para recusar em nome dele o Oscar de melhor ator por The Godfather, e ler uma carta em que ele reclamava da forma como o cinema tratava os índios. Ah, perdão, os nativos-americanos.
Em 1978 (creio), Vanessa Redgrave, tão vermelha quanto indica o início de seu sobrenome nobre, de uma das maiores linhagens de atores do mundo, denunciou os “delinquentes sionistas”.
Em 1990, a loura Kim Bassinger reclamou da ausência de Faça a Coisa Certa, do supremacista negro Spike Lee, entre os candidatos ao Oscar de melhor filme.
Em quase todas as festas dos primeiros anos 2000 houve algum tipo de discurso contra George W. Bush e sua guerra ao Iraque justificada por ele pelas armas de destruição em massa que jamais foram encontradas.
Em 2003 teve o discurso de Michael Moore, essa espécie de Guilherme Boulos do documentarismo americano.
E não faz nem dois que Patricia Arquette aproveitou-se do palanque do Oscar para exigir salários iguais aos dos homens para as mulheres da indústria.
E no ano passado teve toda a onda de reclamações contra o #OscarSoWhite.
(Para registrar esses vários tipos de politização da festa do Oscar, me servi não apenas da memória, mas de um texto de Stephen Silver no Screen Rent, “The Case for Politics at the Oscars”. É um belo texto, que deve ser lido por quem tem interesse pelo assunto.)
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E o fato é que, como dizia o Chico Buarque, a respeito de uma outra, é claro, “foi bonita a festa, pá”.
Aquele número inicial do Justin Timberlake chegando por trás do Dolby Theatre, pela entrada do público, e fazendo todo o povo ficar de pé e mexer os ossos, foi uma delícia. O discurso inicial, logo a seguir, do apresentador da noite, o ótimo Jimmy Kimmel, foi um absoluto brilho.
Ao enfatizar o termo “overrated”, supervalorizada, que Donald Trump usou para tentar desqualificar Meryl Streep, no dia seguinte ao belo discurso dela na cerimônia do Globo de Ouro, Jimmy Kimmel criou um dos momentos mais emocionantes da história do Oscar, na minha opinião: todos os presentes ao Dolby Theatre se puseram de pé, não apenas para reverenciar uma das melhores atrizes da História do cinema, 3 Oscars, fora outras 17 indicações, 166 prêmios de uma maneira geral, fora outras 366 indicações, mas para se solidarizar com uma profissional esplêndida que havia sido agredida nominalmente pelo presidente da República.
Jimmy Kimmel foi um ótimo apresentador. A coisa de chover docinhos sobre a platéia foi um belo achado. Foi emocionante a colocação de um profissional dizendo por que, ainda bem jovem, admirou um mais veterano (Charlize Theron tietando Shirley MacLaine, Javier Bardem babando por Meryl Streep, Seth Rogen se deliciando com Michael J. Fox), e depois aprendiz e mestre entrando juntos no palco, foi emocionante.
Toda a sacada – pela primeira vez, numa coisa que já estava na sua 89ª edição – de apresentar cenas antigas dos atores recebendo prêmios, antes da entrega a cada um dos quatro, é do mais absoluto brilho. Por quatro vezes, vimos clipes que nos trouxeram a memória anos, décadas, eras de belo cinema. Emocionante, lindo, maravilhoso.
Que perfeição a apresentação das duas músicas de La La Land que concorriam ao prêmio de melhor canção.
Que delícia a coisa de Jimmy Kimmel ficar pegando no pé de Matt Damon o tempo todo.
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Deliciosa a declaração do grande Gael García Bernal, ator excelente, pequenino ao lado da atriz Hailee Steinfeld, que dividiu o palco com ele: “Como um mexicano, como um trabalhador migrante, como um ser humano, sou contra todas as formas de muros que nos separam”.
Que beleza, que maravilha a carta assinada por Asghar Farhadi, diante do seu segundo Oscar de melhor filme estrangeiro, lida pela engenheira iraniana radicada nos Estados Unidos Anousheh Ansari.
Que grandeza.
Vi no Facebook gente que ironizava o fato de um iraniano estar falando de democracia para um americano.
Como se não pudesse.
O Irã é uma porcaria de uma ditadura teocrática, uma das piores que há no mundo. E os Estados Unidos são de fato a mais poderosa democracia liberal do planeta.
Mas Asghar Farhadi pode falar o que ele bem entender para Donald Trump. Asghar Farhadi é um dos melhores cineastas de todos os tempos, e Donald Trump é com toda absoluta certeza o pior de todos os presidentes que os Estados Unidos já tiveram em 241 anos de democracia. Donald Trump é um narcisista doentio, uma pessoa despreparada para o cargo, que põe em risco a humanidade.
O cinema tem todo o direito de fazer comício contra ele.
Na verdade, o dever.
27/2/2017
Adorei esse texto, Sergio. Perfeito.
Qualquer um perceberia que Warren Beatty ficou intrigado com o que lia no cartão, menos a Faye Dunaway que logo se apressou em bradar LaLaland. Boba…
Hoje a PriceWaterhouse já pediu desculpas pelo erro, que foi chatinho mesmo…
Pena, porque a festa estava ótima e os pitacos de todos contra o i****** do Trump faziam a alegria da plateia.
Adorei o italiano que dedicou seu Oscar aos old italians que fizeram a America!
Senti foi a ausência de uma nota sobre o Carnaval da Marina. Ela não se fantasiou?
bj,
MH
Servaz, é preciso escrever cinquenta anos de textos sobre cinema para produzir um artigo com a propriedade e a qualidade desse. Sem desfazer do nosso querido site, pena que não esteja nas páginas do Estadão.
É isso mesmo. O cinema, a mais completa das artes, a que mais revela a alma, o sentimento de um povo, não pode deixar passar em branco as asnices do Trump. Tem obrigação de alertar os EUA e o mundo, de mostrar o risco que corremos com esse infeliz na Casa Branca. A capa da The New Yorker também está perfeita, assim como o teu artigo, Sergio Vaz.
Não assisti a festa de entrega do Oscar, conservadora demais apesar da evidente politização. Preferi a festança popular, os desfiles de escolas de samba de SP e RJ e os desfiles de blocos que deram a tônica em matéria de política nacional brasileira. O pais de cabo a rabo, do Oipoque ao Chuí, entoou o grito de Fora Temer.
O fora Trump não me empolgou e foi devido e brilhantemente acompanhado pelo Servaz que reduziu a texto excelente tudo o que se passou nas “terras do mal virá”.
Aqui os medíocres batiam tambores e além do Fora Temer cantavam enredos em louvor a Carolina Maria de Jesus e ao almirante negro João Cândido honestamente retratados pela pequena e ainda não Global escola Renascer de Jacarepaguá. Segue trecho do samba enredo:
SOU A FILHA DA MISÉRIA
VOCÊ NASCEU PRA GUERREAR
NÓS SOMOS A LIBERDADE
EU SOU PAPEL, VOCÊ É O MAR
Político também o enredo da PORTELA
Parabéns à Portela que fez maravilhoso desfile na Sapucaí. Como se fosse um rio, mostrando o fenômeno da Piracema e depois a tragédia de Mariana em que as águas barrentas do Rio Doce invadiram tantas cidades da região após o rompimento da barragem de Fundão, de responsabilidade das empresas Samarco, BHP e Vale. FOI UM TSUNAMI apresentado por Paulo Barros, só faltou o lamento do moribundo Tiête.
O PERFUME DA FLOR É SEU
UM OLHAR MAREJOU SOU EU
QUEM NUNCA SENTIU O CORPO ARREPIAR
AO VER ESSE RIO PASSAR
E ainda o samba-enrendo da Imperatriz Leopoldinense ( que já foi Global ) vem causando incômodo no setor do agronegócio brasileiro. Com o tema “Xingu, o clamor que vem da floresta”, a música é uma homenagem e um grito de guerra da luta pela preservação da floresta e da cultura indígena para desagrado o agronegócio.
Pena que a esquerda perdeu o talento do Servaz, a está altura estaríamos lendo um precioso texto reforçando nossas raízes culturais.
Houve uma época que achei ser Sérgio um dos nossos infiltrado nas redações conservadoras do Estadão. mas qual, uma queda nos fez perdê-lo.
O texto de Servaz, cheio de referências políticas do agrado dos socialistas e prato cheio aos liberais conservadores incrustados na academia hollwoodiana, tomou minha atenção, agora vou esperar um ano para novo Oscar.
Como diz minha esperança: Vamos caminhar vovô.
Passado o feriado do Carnaval, resta um último suspiro de folia. A ressaca e a volta ao trabalho não impedirão os mais entusiasmados de decretarem que o carnaval continua até o domingo. Quem sabe não vai até além? Serpentinas, glitter e confetes não irão faltar. Nesta quarta-feira de cinzas, conheceremos a escola campeã, no Rio de Janeiro. Mas o grito mais ouvido neste carnaval já está eleito. Em uníssono, o carnaval de rua e os blocos de todo o Brasil ecoaram forte, e em todos os ritmos, “Fora Temer”.