Eu e a jumenta

Minha terra natal (Pão de Açúcar, em Alagoas) tem o privilégio ímpar de ser banhada pelo Rio São Francisco. Naquela parte final do “Velho Chico”, chamada de baixo São Francisco, a água é geralmente cristalina, límpida e de um azul impossível, antes de se precipitar e se perder no mar.

Quando criança, eu adorava tomar banho no São Francisco, sem a permissão de nossa mãe. Havia, aqui e alhures, lendas de cardumes de piranhas que devoravam banhistas. A despeito de isso nunca ter acontecido, esse tipo de ataque voraz de um cardume estraçalhando um ser humano costumava povoar nosso imaginário infantil e nos causava muito medo. Mas o fascínio e a atração que o refrescante banho de rio exercia sobre nós era mais forte! Dada essa nossa inabilidade de nadador, banhávamos onde conseguíamos “tomar pé”.

Nossos banhos de rio traquinas geralmente eram efêmeros. Subíamos em uma das canoas, desnudávamos e mergulhávamos furtivamente no rio, por trás das canoas! A nossa insolência infantil não durava mais que 10 minutos. Depois do refresco do banho, púnhamos nossas vestes que, úmidas, eram ressecadas em poucos minutos pelo calor abrasador de Pão de Açúcar.

O Rio São Francisco, à altura de Pão de Açúcar, é lindo! Uma das coisas mais belas que se via subindo ou descendo sua calha, naquela época, eram as cada vez mais raras canoas de tolda, majestosas e colossais embarcações dotadas de duas velas gigantescas e uma espécie de abrigo localizada na proa que singravam o rio, ziguezagueando da margem alagoana à margem sergipana, à procura do melhor ângulo para a brisa fazê-las deslisar mais rápido sobre a lâmina d’água.

Havia ao longo da margem alagoana do São Francisco e bem em frente à área urbana da cidade uma grande e sinistra canoa, de nome “Jumenta” que naufragara e ficara semienterrada. A “Jumenta” nem sempre estava à mostra, pois, de forma sazonal, o rio recuava ou avançava suas margens por longos períodos, a depender do comportamento das chuvas na cabeceira do rio e da vazão das comportas da hidrelétrica de Paulo Afonso. Assim, em determinados períodos do ano, o São Francisco nos permitia entrever o fóssil da inerte, sinistra e fascinante “Jumenta”.

Mas – e aí vem o motivo do adjetivo “sinistra” -, tomar banho na “Jumenta” poderia ser muito perigoso para quem não sabia nadar, pois, de um lado da canoa naufragada era raso, devido ao acúmulo de areia resultante do assoreamento. Porém, do outro lado, formava-se um bolsão profundo criado pelo redemoinho do rio que levava a areia – um pequeno abismo para nós crianças! A despeito disso, a “Jumenta” jazia ali, não sei há quantos anos, imóvel, resignada com seu destino trágico de Titanic do baixo São Francisco, como que se contentando por, pelo menos, servir eventualmente como um modesto brinquedo aquático!

Naquele dia, estavam conosco mais uns dois ou três moleques, igualmente jovens e desobedientes, curtindo o banho ao redor da “Jumenta” e os perigos que ela guardava. Deveríamos tomar banho no lado raso da “Jumenta”, mas, na verdade, estava eu (sempre eu!) a tomar banho no lado abissal e perigoso da náufraga embarcação, pois tomar banho no lado raso não tinha a menor graça. Mas eu cuidara de me banhar segurando em sua estrutura de madeira para não submergir.

De repente, num momento de descuido ou de ousadia meus, vi-me solto da estrutura da canoa que me garantia ficar à tona!

Logo, o redemoinho levou-me para fora de seu alcance! Num esforço hercúleo, tateei tentando segurar na canoa. As pontas de meus dedos chegaram a tocá-la, mas não o suficiente para eu empunhar firmemente a madeira cheia de limo, e eu perdi o frágil contato com minha tábua de salvação!

Tomado de pavor, tentei alcançá-la de novo, em vão. Uma forte descarga de adrenalina percorreu meu corpo da cabeça aos pés, fazendo-me arregalar meus olhos já naturalmente grandes! Comecei, então, a me afogar!

Debatia-me, quase que inutilmente, na tentativa de manter minha cabeça à tona, desprovido de habilidades para nadar ou boiar. Meus gritos por socorro, se é que os dei, pareceram-me, naquele instante, inaudíveis pelos meus companheiros de aventura, pois ninguém acorrera a me salvar.

Rapidamente calculei que restava-me uma única alternativa: tentar tocar o leito do rio, que imaginara estar próximo, para, num impulso, voltar à tona e tentar renovar o ar de meus pulmões, cujo oxigênio já se encontrava em níveis críticos, e agarrar-me novamente à estrutura da “Jumenta”. Pus em prática, então, aquele meu plano B.

Submerso, estiquei, rapidamente, minha esguia perna na direção do fundo do rio desejando, mais que tudo, tocar em seu leito! Já quase sem fôlego, e quando senti ser impossível tocar o leito, outra descarga de adrenalina, dessa vez mais forte, percorreu meu ser e o caos se estabeleceu em mim!

Num último instante de minha iminente morte, quando meus pensamentos já estavam ficando desconexos, e com a frequência cardíaca acima dos 130 b.p.m., minha mão foi segura firmemente e eu fui puxado para a segurança. Minha vida iria durar, pelo menos, uns 47 anos dali em diante!

Sinceramente, não sei – nem me lembro – quem me puxou. Meu próprio desespero me impediu de saber quem fora meu salvador naquele instante. Sempre achei que fora um dos moleques que estavam curtindo o perigoso banho na “Jumenta”.

Meu fascínio pela “Jumenta” acabou para sempre naquele dia. Nunca mais nos reencontramos, eu e a “Jumenta”. Naqueles momentos de desespero eu nem tinha tido tempo de pensar se aquilo ocorrera porque Deus me abandonara, me deixara à própria sorte!

Voltar-me para a espiritualidade é uma novidade que está me fazendo interpretar os fatos presentes e pretéritos de minha vida, a minha própria existência e o mundo sob uma ótica diferente, e permitiram-me entender que aquela mão salvadora que se estendeu em minha direção foi, em última análise, a mão Dele, ou foi, pelo menos, providenciada ou autorizada por Ele. Não tenho motivos, pois, para me sentir sem privilégios com Ele. Ninguém os tem.

Hoje, posso entender e aceitar, um pouco melhor, que Aquela força é indispensável, sim. Ela está sempre disponível para todos nós. Isso se chama fé! Amém!

(*) Volney Amaral, advogado, de Maceió, publica o Blog do Volney Amaral.

Um comentário para “Eu e a jumenta”

  1. O título, a despeito de a embarcação naufragada ter mesmo esse nome. é chamativo pelo fato de que, no sertão, parte dos adolescentes praticam a zoofilia, como iniciação sexual! As jumentas são as vítimas mais comuns dessa prática!

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