Era mais fácil falar das pernas de Angie Dickinson, mas vou obrigar-me a só olhar para o cinturão, coldre e colt de John Wayne. Sei do que falo, xerife foi a primeira coisa que fui na vida, revólver à cintura, uma longa cana de mamoeiro a fazer de Winchester. Também fui índio e bandido, mas xerife era a minha devoção, meio John Wayne, meio Buck Jones, insofismável semi atestado da minha caretice infantil.
O cinturão de Wayne, de que não tiro os olhos, atravessa em lento bamboleio o Rio Bravo, que Howard Hawks filmou, em 1959, a fechar a década em que um vivíssimo amarelo, mais amarelo do que o “Cristo Amarelo”, de Gauguin, se derramava nos melhores westerns. Amarelíssima era a camisa de Joan Crawford em Johnny Guitar e do mesmo glorioso amarelo era a blusa de Feathers, personagem de Angie Dickinson que, em Rio Bravo, mostra os negros collants a Wayne.
Mas não é dos collants e das pernas louva-as Deus de Angie Dickinson que venho falar. Se tenho palavras é para o cinturão, coldre e colt que cingem as vastas ancas de Wayne. Foi por causa desse xerife e do sólido andar dele que Hawks fez o filme.
Rio Bravo foi a arma de que Hawks puxou para abater Fred Zinnemann, autor do célebre High Noon. Medíocre, como quase todos os filmes célebres, pensou Hawks. High Noon tinha um xerife, Gary Cooper. Prendera um poderoso facínora e um regimento de fora-da-lei vinha atacar o acossado xerife e resgatar o seu führer ou secretário-geral. Gary Cooper ia, de porta em porta, tentando montar a sua geringonça. Todos lhe viravam as costas, até a branca e radiosa noiva, Grace Kelly.
Ouçam a zanga épica de Hawks: “Um bom xerife não vai pela cidade, como galinha tonta a pedir ajuda a toda a gente para ser salvo no fim pela noiva quaker.” Os heróis de Hawks são profissionais e estão sentados nas suas angústias: Wayne na solidão, Dean Martin na bebida, Walter Brennan na perna coxa, os 18 anos de Ricky Martin num “que-se-lixismo” inocente. Buscam a redenção individual, encontram-na no grupo, salvando a cidade cercada, num filme quase sem grandes planos.
Para xerifes diferentes, filmes diferentes: os planos de High Noon estão cheios de significado, os de Rio Bravo estão cheios de alegria; os enquadramentos de Zinnemann são a régua e esquadro, os de Hawks são uma festa de cor. Ah, no Lloyds of London, um milhão de dólares segurava as pernas de Angie Dickinson.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Rio Bravo no Brasil é Onde Começa o Inferno. High Noon é Matar ou Morrer.
Um comentário para “As ancas de John Wayne”