Era muito alta. Estiquei-me para lhe dar dois canónicos beijos na face e, rotundo falhanço, beijei na boca a conselheira cultural de um país amigo. Já relatei aqui esse erro benigno. Mas estes seis anos de crónicas no Expresso estão tintados por erros e beijos menos exaltantes.
Se toda a gente me perdoará ter trocado o músculo zigomático maior pelo músculo orbicular da boca de uma alta diplomata, já muitos narizes se torcem por ter metido os pés pelas mãos e ter situado tarso e metatarso na mão com que amparei o estiranço na manhosa calçada de Lisboa. Andei semanas a lamber o erro, a procurar que tarso e metatarso, carpo e metacarpo voltassem às posições originais, ginástica para que já não tenho idade.
Outro erro: a amada língua portuguesa. Em vez de a beijar, mordi-a. Quando era miúdo, para horror do senhor Mário, admirável barbeiro e mestre, que me mandava ler o Província de Angola em voz alta se não houvesse clientes, pronunciava sempre mal a palavra “fôlego” e ainda hoje sufoco se o termo vem à boca de uma frase. Descubro, enfim, que os erros ortográficos dos 8 e 9 anos voltam para fazer gato-sapato da minha provecta idade. No título de uma crónica, escrevi um erro, tão fulgurante como o relógio que brilha no pulso de um figurante romano em Ben-Hur. Escrevi “rectaguarda” com o rutilante “c” a clamar “erro burro”, como gritávamos nas aulas da professora Emília. Lembrei-me de Pulp Fiction e da tinta vermelha que Travolta põe no peito de Uma Thurman para não falhar a injecção no coração. A marca está lá, e num desses erros de continuidade em que os filmes são pródigos, desaparece logo que a agulha vai coração dentro. O coração de papel do Expresso não é como o de Uma Thurman e o meu “c” não se apaga.
Há três semanas esbarrei no erro cinéfilo. Disse que High Noon era um filme de William Wyler. E sustentei tese selecta, comparando-o a Hawks. A tese até era boa, o molho é que a azedou. Embora me desse jeito que fosse de Wyler, High Noon é, como sempre soube, de Fred Zinneman. Não me desculpo. O “erro burro” prova que a crónica é genuína. Agarrei-me a uma declaração de Hawks a chamar galinha tonta ao xerife que era Gary Cooper. Deixei-me tentar e o resto foi de rajada: com beijos na boca até perder o fôlego e uma tese de vanguarda sem proteger a retaguarda. Estou bem capaz de perdoar os erros que dou pelo bem que me sabem.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Nota do administrador: Ao ser reproduzida no 50 Anos de Textos, a crónica dizia que High Noon é de Fred Zinnemann. O administrador é cuidadoso, e sabia que Manuel sempre soube quem fez o filme.