Tempos de ira

Viramos o século 20 com uma chama de esperança. A queda do muro de Berlim, o fim do apartheid, o colapso da ditaduras latino-americanas e o advento da globalização justificavam tais sentimentos. A Primavera Árabe reforçou mais ainda a impressão de que os valores da democracia ocidental se afirmavam em escala planetária.

Essa leitura otimista não se confirmou. Ao contrário, vivemos hoje tempos de ira, de extremos radicalizados. Do terrorismo fundamentalista, que quer fazer a humanidade retroagir à barbárie, à sua não-resposta, o xenofobismo e o racismo.

O trágico atentado homofóbico da boate Pulse, na cidade de Orlando, é mais um episódio deste mundo das trevas e fraciona mais ainda uma América já polarizada pelas candidaturas da democrata Hillary Clinton e do republicano Donald Trump.

Ainda que tenha sido produto da ação de um “lobo solitário”, provavelmente inspirada em propaganda do Estado Islâmico que circula na Internet, o massacre de Orlando reforça na agenda da disputa presidencial dois temas centrais: o combate ao terrorismo e a limitação do comércio de armas.

O primeiro diz respeito não apenas à segurança dos americanos, mas também a de todo o mundo, dos países e povos comprometidos com os valores da liberdade de expressão, da diversidade, da tolerância e da liberdade sexual. São esses pilares da civilização que vêm sendo atacados pela ação terrorista.

A defesa de tais valores requer uma liderança de pulso forte e equilibrada, capaz de construir uma aliança mundial contra o terrorismo, de buscar soluções conjuntas.  Os Estados Unidos têm a vocação natural de exercer essa liderança, mas o desempenho desse papel depende de quem será o próximo presidente.

Sobejamente, Trump tem dado demonstrações de que não tem o equilíbrio necessário para tal. Dado ao histrionismo, ele politiza a tragédia, joga com o temor e a insegurança dos norte-americanos, prometendo fechar as fronteiras do país aos muçulmanos, da mesma maneira que ameaça subir um muro na fronteira com o México.

É como disse Hillary Clinton, em vez de construir pontes – como o atual presidente Barack Obama construiu com Cuba e o Irã – Trump “ergue um muro entre os americanos”, estimula a discriminação e o preconceito contra os imigrantes, como se eles fossem os responsáveis pelas mazelas americanas.

O candidato republicano não está inovando muito nesta matéria. Hitler atribuía os males da Alemanha aos judeus e aos imigrantes de uma maneira geral.

O mundo inteiro está de olho na eleição americana por diversas razões, mas a maior delas é que os EUA são um fator de estabilidade e de equação dos problemas mundiais.

Concretamente, Trump propõe um caminho isolacionista que levaria os EUA a abrir mão do seu papel de liderança, de buscar soluções pactuadas. Não é gratuita a preocupação de líderes de vários países com as intenções de Trump de estabelecer guerras comercias com a ruptura da Parceria Transpacífica, de renegociar o acordo nuclear com o Irã e de estender as armas nucleares para o Japão e Coréia. Se um artefato desses cair nas mãos de terroristas, não sabemos o tamanho do holocausto que pode ocorrer.

Como entender que no país de Lincoln, de Thomas Jefferson, de Martin Luther King, um candidato folclórico e populista tenha chances de se eleger presidente?

Donald Trump é uma resposta equivocada nesses tempos de ira e faz parte de um fenômeno muito presente no cenário europeu: o advento de uma direita ultranacionalista e xenófoba, em contraposição à globalização que levou à União Europeia e à livre imigração. Provavelmente as bases para seu surgimento estejam na crise econômica de 2008, da qual o mundo ainda não se recuperou inteiramente, nem mesmo os Estados Unidos.

A guinada à direita trouxe em seu bojo o racismo, o endurecimento contra os imigrantes, particularmente após as levas e levas de sírios que emigraram para a Europa para fugir dos horrores da destruição de seu país. Os atentados terroristas do Estado Islâmico contra símbolos da cultura ocidental e democrática jogaram água no moinho do racismo e da intolerância, alimentando, assim, a islamofobia.

Como com o ódio nada se constrói, dobram-se as apostas em Hillary para que os Estados Unidos continuem um país tolerante, inclusivo e justo.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 15/6/2016. 

 

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