A beleza virtuosa de Madame de Tourvel só é a beleza virtuosa de Madame de Tourvel por causa da esplêndida expectativa de vir a ser vilmente corrompida.
Esqueceram-se de quem é Madame de Tourvel? Lembro-vos que ela tem o rosto que Michelle Pfeiffer lhe deu em Dangerous Liaisons. Admiramos a sólida consistência da virtude se estivermos a falar da Madre Teresa de Calcutá, até mesmo da missionária que Ingrid Bergman era na Pousada da Sexta Felicidade, exemplo óbvio de um filme em que não se come carne. Mas se pensarmos no feliz Papa Francisco, já lhe queremos inquinar a biografia com a insalubre beleza de um pequeno vício: por exemplo, um singelo lava-pés como o da veneranda Maria, provavelmente Madalena, ao Cristo descalço!
Deixemos as saias do Papa Francisco e pensemos agora nas de Michelle Pfeiffer. Mais vestida do que em Dangerous Liaisons não podia estar. O filme é a adaptação da francesíssima obra de Laclos, romance de intrincada manipulação e perversa sedução.
Stephen Frears, o realizador, convidou Pfeiffer para o papel da Marquesa de Meurteuil, master mind da manipulação, com orgástico gosto pela destruição de reputações seráficas. Pfeiffer não quis. Preferiu ser Madame de Tourvel e incarnar a suprema virtude, amor e fidelidade, na deliciosa perspectiva de, depois, se dar à tortura de prazeres ilícitos, e de, em arrebatadas angústias metafísicas, se desfazer em eflúvios licenciosos.
Corrompia-a o Visconde de Valmont. John Malkovich diz o texto e o texto é belo e imoral, assim Deus seja abençoado. Mas é visual e líquido o elemento mais perturbador da estratégia desse Valmont que vemos ser Malkovich. Entre a ponta da língua e o lábio inferior, Malkovich segrega um ligeiro excesso de saliva. É a presença sibilante dessa saliva que transmite uma doce baba obscena à teia sedutora em que Malkovich vai aprisionando a pasmosa simetria do rosto de Pfeiffer, a sua boca de frutos vermelhos, os seus olhos de um azul escandinavo.
Assistir à doce queda da virtude é a acrisolada e perversa vocação de todo o nocturno espectador de cinema. Que Pfeiffer e Malkovich tenham mantido, durante as filmagens, o que a Imprensa chama um “tempestuoso affair” é apenas a modesta taxa de juros que a vida se obriga a pagar ao cinema quando quer ser interessante.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
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