Hoje Marina visitou, pela primeira vez, o lugar em que a mãe trabalha.
Adorou.
Sentou-se à mesa de trabalho da mãe, e fez que trabalhava, colocando as mãos abertas sobre o teclado, digitando de brincadeirinha.
Digitando, mas com a expertise de quem sabe datilografar, usar todos os dedos. Muito diferente de catilografar, catar as teclas só com os dois indicadores, feito fazem os que não são profissionais.
Eu não estava lá, mas posso afirmar com toda certeza que ela colocou as mãos abertinhas sobre o teclado porque é assim que ela faz sempre – na minha velha Olivetti, que ela chama de “máquina de trabalhar”, no teclado do laptop de brinquedo que ela ganhou de Natal da Abuelita, no teclado da mãe nos poucos momentos em que a mãe permite que a pequena fique diante do laptop dela.
Os dedos de Marina são longos, compridos. Desde que ela era muito bebê a gente notava isso, e brincávamos que ela seria ou pianista, ou violoncelista, ou exímia trabalhadora com as teclas de um laptop, que afinal se apresentam na mesma ordem em que estão nas máquinas de escrever desde que foram inventadas – asdfgh, asdfgh.
Foi em julho de 2015, quando estava com dois anos e quatro meses, que ela pela primeira vez brincou com a minha velha Olivetti. Foi exatamente na noite de sábado para domingo em que o pai deu festa de aniversário, e Marina veio dormir aqui em casa.
Sei disso não porque tenha uma memória fantástica, mas porque anotei. Na época, anotei – e, se você anota, fica, permanece, manent, como em verba volant, scripta manent:
Foi a primeira vez que ela viu a Olivetti aqui em casa, e ficou muito, muito tempo diante da máquina, brincando, apertando a tecla de espaço para ver o carro andar, apertando as teclas para ver os bracinhos das letras se levantando, apertando a tecla de fixar maiúscula para ver todo o conjunto subindo e descendo.
Impressionante: ela espalha todos os dedos sobre o teclado. Instintivamente, ou então talvez por ter observado muito a mãe usando o teclado do computador – a gente nunca vai saber –, ela não usa só os indicadores, e sim coloca toda a mão, e mexe com vários dedos ao mesmo tempo.
(A mãe usa todos os dedos para escrever, digitar, sentenciar, no teclado dela. Mérito dela, mas também meu. Quando ela estava com, sei lá, 16, 17 anos, botei minha filha numa escola de datilografia. Já era época da chegada dos computadores, e Fêzinha protestava contra esse negócio de mexer com máquina de escrever, mas insisti. Hoje com toda certeza ela reconhece que fiz bem: maneja com maestria o teclado.)
Por instinto, ou por observar a mãe, Marina ao brincar não catilografa com os indicadores: quase que datilografa como se tivesse diploma.
***
Por uma coincidência fantástica, dois dias antes de Marina conhecer o lugar em que a mãe trabalha, a sala em que a mãe trabalha, eu pela primeira vez tinha feito questão de entrar com ela no nosso escritório.
Marina domina nosso apartamento como se fosse o dela. Sente-se aqui inteiramente à vontade – é de fato como se fosse uma segunda casa dela. Anda por todos os cômodos, absolutamente segura de si. Mas ainda não tinha prestado muita atenção ao escritório. Na visita dela no dia 25, aniversário de São Paulo e da vó Suely, encaminhei-a para o escritório, falando que, como o papai tem o studio, o vovô e a vovó também têm, que é este escritório aqui.
Prestou toda atenção.
Mostrei as muitas fotos da mamãe dela que há no escritório, ela prestou toda atenção. Apontei minha mesa, minha tela, a mesa de Mary, a tela de Mary. Ela repetiu depois de mim, como em geral faz, demonstrando que está guardando, que está arquivando nos neuroninhos: – “Ali é a mesa do vovô, ali é a mesa da vovó”.
E depois, na visita que ela nos fez na segunda, 25, aniversário de São Paulo e Suely Rossanez, pediu para brincar com “a máquina de trabalhar”.
Enquanto ela trabalhava, fotografei, é claro. Mary fez filmete, que nem vi ainda.
Marina brincando de trabalhar na minha velha Olivetti é a coisa mais linda, mais fofa, e mais fotografável do mundo!
Exatamente no dia em que a mãe de Marina fez 1 ano de idade, fiz uma série de fotos dela no colo de Suely, brincando de trabalhar na Olivetti, e Suely fez outra série dela no meu colo.
Ver essas fotos de Fernanda diante da Olivetti com um ano ao lado das fotos da filha dela diante da Olivetti me dá imenso prazer.
Fico com aquela sensação gonzaguiana de que estou passando coisas de pai pra filha, de filha pra filha… Aquela sensação walter-franquiana de que quem puxa aos seus não degenera, não.
***
Minha filha me ligou pra contar sobre a ida de Marina ao local de trabalho dela, e sobre a imensa alegria que a pequena demonstrou, mostrou, exibiu: “o lugar do trabalho da mamãe, o lugar do trabalho da mamãe!”
Me lembrei bem vagamente de ter levado a mãe de Marina, em um ou outro plantão de fim de semana, para o meu local de trabalho, a redação do Jornal da Tarde. Comentei isso com minha filha, e ela disse que se lembra, sim, daqueles dias, e da Patrícia Barreto a conduzindo por todos os lugares, e sendo reconhecida por todo mundo.
Não tinha idéia de que minha filha se lembrasse de fatos acontecidos quando ela era tão pequetita.
Espero que minha neta vá se lembrar sempre do studio de trabalho do pai, do escritório de trabalho do vovô e da vovó, da sala de trabalho da mãe.
Espero que Marina use muito bem seus dedos longos, lindos, para fazer boas coisas – seja no piano, seja no violoncelo, seja no teclado asfdgh asfdgh. Seja para criar, para relatar, para reportar, para anotar, para sentenciar. Seja até mesmo para escrever sobre os filmes dos outros.
Use bem seus dedos lindos na vida, Marina linda.
27 de janeiro de 2016
Ela, Marina, é a esperança de mundo melhor, o muindo de Marina como salientou sua bisa Lúcia. Seus dedos certamente serão criadores como os do pai, relatores e anotadores como os avô, reportadores como os da avó, e sentenciador como da mãe. Não degenerará certamente. O mundo espera por seus dedos, dati ou cati lografando!