Ando a tentar lembrar-me do que me disse a Virgem Maria quando eu nasci. É provável que não me tenha dito nada, o que me deixa meio ofendido, porque, mal tinha nascido, Marcello Mastroianni ouviu-a dizer: “És daqueles que vai ficar bebé para sempre e tornar-se actor.”
Nem é bem Mastroianni ter cumprido esse voto. A Virgem Maria, que não lê jornais, é que raramente se engana. O menino Marcello abriu os olhos em Fontana Lisi, lá para as faldas dos Apeninos, o que não é muito diferente de Vale de Madeira, aldeia onde nasci. Depois, Mastroianni cresceu em Turim e Roma e aí eu levo-lhe a vantagem de ter crescido na Luanda colonial: na protecção à lúdica infância, a Luanda colonial dava um farfalhudo bigode a qualquer cidade europeia.
Mastroianni não passou a adolescência meio nu na praia, não andou aos tiros aos pássaros no mato, não viu jacarés e macacos, e não leu romances deitado num frondoso tronco de mangueira. Pois não, mas a sofrida infância europeia fê-lo actor, como a Virgem lhe prometera. Dir-se-á que teve de esperar pelos 40 anos para ser actor que o mundo visse. Fellini tirou-o dos confortáveis braços da Virgem Maria e atirou-o para a Dolce Vita, para os pequenos infernos que eram os festins decadentes da alta sociedade romana.
Deixei-me levar e divago. Não era disto que vinha falar. O que interessa é que Mastroianni, não sendo um actor tardio, melhorou com a idade. Eu, que nunca o encontrei, perguntei-lhe, e ele, que nunca me viu, explicou-me. Suponhamos, então, que é ele a falar. Quando passas dos 60, acabam-se as aventuras amorosas, e já tens medo de te enfiar num quarto de hotel com os primeiros olhinhos tremeluzentes que te aparecem. Sabes lá se aguentas. Então, o cinema é a tua cama de salvação: dá-te a ilusão de seres jovem. Já não chegas ao estúdio para filmar depois de teres estado a fazer amor até às cinco da matina. O cinema, agora, é que te oferece todas as fantasias. A miúda de biquini, que vês na praia de Ostia num domingo de manhã, e deixa malucos os teus 60 anos, é a ilusão que levas para as filmagens e convertes em realidade.
Ser actor é converter as piores mentiras nas melhores verdades. Aprende-se, disse Mastroianni, aos 60 anos. Como a Virgem Maria fez o favor de explicar, ser actor é ter 60 anos e um cérebro de 10.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Na foto, Marcello Mastroianni e Sophia Loren em Prêt-à-Porter, de Robert Altman.