Há as mentiras, os slogans. E há os argumentos

Dilma Rousseff e os que ainda a defendem repetem palavras de ordem, slogans, cânticos, mantras. Não vai ter golpe, não vai ter golpe, não vai ter golpe. Acostumaram-se a crer na velha máxima: se uma mentira for repetida à exaustão, as pessoas passam a acreditar que é verdade.

A própria Dilma, entrincheirada no Palácio do Planalto, que pertence à República Federativa do Brasil, mas que ela e o PT roubaram do país e transformaram em seu bunker pessoal e intransferível, dia sim dia não faz homilias para os já convertidos, agredindo já não mais apenas a gramática, a sintaxe, a última flor do Lácio inculta e bela que Camões, Pessoa e Machado tanto dignificaram, mas agora cada vez mais passando como um trator também por cima da lógica, da História, do bom senso.

Compara quem a quer ver pelas costas aos nazistas que dizimaram seis milhões de judeus.

Como se 68% dos brasileiros fossem soldados da Gestapo e sacrificassem judeus, ciganos e tantos mais nas câmaras de gás.

Como se mentiras, slogans, mantras e insanidades fossem bons argumentos.

Porque muito do que importa, no processo de impeachment ora em andamento na Câmara dos Deputados, são os fatos e os argumentos em defesa dos fatos.

Claro, há outros fatores em jogo. Nenhum processo em julgamento num Parlamento se atém única e exclusivamente à razão, à lógica, aos argumentos, às provas. Ao menos em parte, um processo de impeachment é político, e os políticos levam em consideração diversos fatores, antes de se decidirem por votar “sim” ou “não”. Diversos fatores – a opinião pública, o tamanho do presente que virá do atual governo, a perspectiva do tamanho do presente que poderá eventualmente vir com um novo governo. Até mesmo a coluna vertebral, a dignidade pessoal, o apego ao que parece mais justo e correto pesam.

Nos últimos dias, houve três defesas da presidente Dilma Rousseff apresentadas diante da comissão do impeachment na Câmara dos Deputados. Na quinta-feira, 31 de março, falaram para os membros da comissão o atual ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, e o advogado Ricardo Lodi Ribeiro, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Na segunda-feira, 4 de abril, foi a vez do ministro José Eduardo Cardozo, ex da Justiça, agora na Advocacia Geral da União. Ele discursou durante horas para os deputados da comissão do impeachment.

Amplo direito de defesa – e ainda haverá outras oportunidades para que se apresentem os argumentos da presidente Dilma Rousseff.

A questão é que eles não têm argumentos.

Em defesa de Dilma Rousseff, eles têm palavras de ordem, slogans, cânticos, mantras. Não vai ter golpe, não vai ter golpe, não vai ter golpe.

Argumentos, eles não têm.

O pedido de impedimento da presidente, apresentada por três juristas de respeito, um deles fundador do PT, baseia-se especificamente nas chamadas pedaladas fiscais que configuram crimes contra a Lei de Responsabilidade Fiscal e outros ordenamentos previstos na Constituição como sendo argumentos válidos para a apresentação de tal pedido.

Infelizmente, a Constituição não estabelece como motivo para se pedir o impeachment do presidente da República o fato de ele ter quebrado o país, de ter acabado com a economia do país. Nem o fato de sua campanha ter mentido deslavadamente, de ter projetado na TV um Brasil cor de rosa que simplesmente não existia, conforme se comprovou no dia seguinte à divulgação do resultado do segundo turno, em novembro de 2014. Ganhar eleição com mentira, estelionato eleitoral, nada disso é motivo para se afastar constitucionalmente um presidente da República.

O pedido de impedimento da presidente se baseia apenas naquilo que é expressamente apresentado na Constituição de 1988 como motivo de apresentação de pedido de impedimento.

E aí, na hora de argumentar que não houve crime contra as leis que exigem responsabilidade fiscal, os defensores de Dilma Rousseff não têm o que dizer.

Porque ela cometeu aqueles crimes. Dilma Rousseff cometeu os crimes que, segundo a Constituição, são suficientes para que ela seja julgada e eventualmente declarada impedida de continuar no cargo – a depender do voto dos senhores congressistas.

***

Compilei e transcrevo abaixo seis textos publicados na última semana que demonstram, com a mais absoluta clareza, como o governo Dilma Rousseff cometeu crimes contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, e, portanto, deve ter seu pedido de impedimento julgado pela Câmara e em seguida pelo Senado Federal. E que demonstram também, com a mais cristalina certeza, que a defesa dela não tem argumentos convincentes para provar o contrário.

O conjunto dos seis textos que compilei – três editoriais dos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, e um conjunto de três colunas consecutivas de autoria de Miriam Leitão – já seria mais do que suficiente para um eventual congressista ainda indeciso tomar afinal uma decisão. Isso, é claro, se ele for do tipo que toma decisão seguindo a consciência, a verdade, e não a carteira.

Esse conjunto de textos é uma peça acusatória absolutamente irrefutável.

Como um sujeito que trabalhou 36 anos em redações, só posso dizer que tenho orgulho da independência da grande imprensa deste país, e do talento das pessoas que escreveram os textos reunidos aqui.

A defesa trapalhona de Dilma

Editorial do Estadão, 2/4/2016.

Beirou o grotesco a defesa da presidente Dilma Rousseff, na comissão do impeachment, pelo ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, e pelo advogado Ricardo Lodi Ribeiro, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Só os muito desinformados podem ter levado a sério o esforço de ambos para isentar a presidente de qualquer crime de responsabilidade. Os fatos essenciais são claros. Será preciso mudar os dados da contabilidade oficial para apagar os traços das pedaladas fiscais de 2014 e 2015. No fim do ano passado, o governo pagou R$ 72,4 bilhões a bancos públicos, para liquidar dívidas em atraso desde o ano anterior. Antes disso, a Caixa Econômica Federal havia tentado receber na Justiça o dinheiro devido pelo Executivo. Não pode haver dúvida quanto à manobra e à sua qualificação legal. Ao retardar o desembolso dos valores adiantados pelos bancos, o Tesouro se fez financiar por instituições controladas pelo setor público.

Não se tratou de um atraso normal, explicável por um feriado, por um problema burocrático ou por uma rotina definida em calendário. Durante meses e meses, até por mais de um ano, o Tesouro usou o dinheiro retido. Isso é financiamento, uma relação proibida pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Outros governos também cometeram pedaladas, tem repetido em discursos patéticos a presidente da República. Todos, segundo ela, teriam merecido punição. Mas a Lei de Responsabilidade Fiscal só foi aprovada e sancionada no ano 2000 e ela parece desconhecer esse detalhe. Além disso, nada parecido com as pedaladas de seu governo foi registrado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no governo de seu antecessor imediato.

O professor de Direito convocado para a defesa mostrou um nível de sofisticação comparável ao da presidente Dilma Rousseff. Nenhum dos atos por ela cometidos constitui crime de responsabilidade, disse ele. Mas a Constituição afirma o contrário, quando inclui nessa categoria os atentados à lei orçamentária. A ordem orçamentária, como certamente deve saber qualquer advogado com interesse em finanças públicas, tem vínculos indissolúveis com a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Esse mesmo defensor ainda tentou uma analogia desastrada. Se um arquiteto entrega um projeto e o pagamento é atrasado, disse ele, esse arquiteto tem um direito contra seu cliente, mas o vínculo entre ambos é diferente de uma operação de crédito. O professor parece ter esquecido, nesse caso, um detalhe significativo: o serviço prestado pelo banco oficial ao Tesouro é de natureza financeira. Seria comparável, apenas para efeito didático, ao uso de um cartão ou de um cheque especial. Ficar no vermelho por alguns dias pode até ser permitido, sem caracterização de empréstimo, mas apenas por um período muito curto. O gerente de sua agência poderá, com certeza, informá-lo a respeito do assunto.

O ministro da Fazenda foi igualmente infeliz na tentativa de negar o crime de responsabilidade. Menosprezou o prolongamento – pela demora nos desembolsos – das pedaladas de 2014 até o fim de 2015. Atribuiu ao TCU mudança de entendimento sobre as práticas do Tesouro. A partir dessa mudança, argumentou, o governo se ajustou ao novo critério. Mas o TCU, de fato, apenas cobrou do Executivo a observância da regra já em vigor.

Com as pedaladas, no entanto, o governo fez mais do que se financiar com o dinheiro devido às instituições controladas pelo setor público. Aumentou seus gastos e, ao mesmo tempo, maquiou o resultado fiscal de 2014. Mas foi preciso liquidar o atraso com os bancos até o fim de 2015. Assim, a lambança financeira acabou aparecendo, afinal, no déficit primário de R$ 119,9 bilhões contabilizado no fim do ano.

Finalmente, um detalhe de enorme importância: defensores do governo continuam rejeitando a inclusão, nas acusações, de atos cometidos antes do atual mandato. É uma tese esdrúxula. Se for aceita, o governante poderá cometer desmandos no último ano do primeiro mandato, ficando livre de punição se for reeleito. Não pode ser esse o sentido da lei.

A defesa de Dilma

A coluna de Míriam Leitão no Globo, 5/4/2016. Com Álvaro Gribel

O ministro José Eduardo Cardozo começou com muita ênfase nas preliminares, foi convincente nas críticas que fez ao presidente Eduardo Cunha, mas ficou mais fraco exatamente na hora de falar das pedaladas. Ele negou que o governo Dilma tenha feito operações de crédito com os bancos públicos e repetiu que foram atrasos. Não existe atraso de R$ 72 bilhões. A quantidade, no caso, altera a qualidade da operação.

Ao defender a presidente no comitê do impeachment, Cardozo argumentou que “todos fizeram”. Isso é lamentável para um jurista. E nem é verdade. A Lei de Responsabilidade Fiscal, que proibiu operações de crédito com bancos públicos, foi proposta pelo governo Fernando Henrique. Ele não propôs a lei para descumpri-la e sim para estabelecer uma nova ordem na relação entre o controlador e o banco controlado. Teve que lutar pela aprovação da lei à qual o PT se opôs e contra a qual foi ao Supremo. Apesar desta oposição à lei, o TCU não tem registro de que Lula tenha feito essas operações que a sua sucessora fez. E é impossível que os governadores tenham efetuado esta específica operação porque bancos estaduais foram federalizados e privatizados.

Cardozo falou apenas do Plano Safra do Banco do Brasil, mas quando ao fim de 2015 o governo zerou tudo o que tinha ficado pendente de 2014 e 2015 o Tesouro pagou ao Banco do Brasil, Caixa Econômica, BNDES e FGTS. Foram os R$ 72 bilhões pagos no último dia útil de 2015.

O raciocínio do advogado-geral da União é o seguinte: não foram operações de crédito, foram apenas atrasos, não é crime porque todos os outros governantes fizeram, não teve dolo porque não houve má-fé, não foi praticado por ela diretamente, mas pelos seus subordinados. Além de cada parte do raciocínio negar a parte anterior, tem o fato de que ele quer que acreditemos que o ministro da Fazenda e o secretário do Tesouro agiram à revelia da presidente. E que apesar das inúmeras matérias, colunas, artigos alertarem para a violência fiscal que estava sendo cometida, ela permaneceu ignorando os fatos.

Na parte econômica, Cardozo dedicou mais tempo à questão dos decretos de abertura de crédito suplementar, argumentando que todos o fizeram antes, e fazem hoje em outras instâncias administrativas. Citou inclusive o governador tucano Geraldo Alckmin. Pode ser que tenha razão e que, apesar de proibido, tenha virado prática sistemática.

Não faz sentido o argumento de que a meta fiscal nada tem a ver com o orçamento. Não se atinge a meta fiscal se não for através do controle de gastos. Na execução orçamentária há a obrigação de que de dois em dois meses seja feita uma reavaliação de receitas e despesas. O governo Dilma gastou e depois conseguiu no Congresso formas de aceitar o descumprimento da lei. Em 2014, o governo chegou ao ponto de pedir uma licença para nem ter meta fiscal. Ao fim daquele ano, o desequilíbrio era tal que o governo pediu não uma nova meta, mas uma licença para fazer o desconto do tamanho que quisesse na meta. Em 2015, ele aprovou uma meta sob medida para caber todo o rombo que havia produzido.

Se o governo quiser acabar com a Lei de Responsabilidade Fiscal proponha sua extinção e assim terá realizado o projeto que tinha ao entrar na Justiça contra a LRF em 2000. Mas o governo Dilma a desrespeitou e agora diz que não foi nada, foi sem dolo, nem viu, e nem é tão grave assim.

O advogado-geral da União acusou o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, de ter agido por vingança e usou a imprensa para sustentar seus argumentos. Os jornais de fato registraram os eventos desta forma: ao não ter o apoio da bancada do PT no Conselho de Ética ele anunciou a aceitação do pedido de impeachment. Ele acusou Cunha de “abuso de poder”.

Outra tese que o governo sustenta — e neste ponto Cardozo se apoiou na decisão de Cunha, porque favorece o governo — é que só podem ser considerados atos de 2015. Os juristas que o digam, mas no caso da economia há uma continuidade de eventos. A desordem que ela fez nas contas públicas no fim do primeiro mandato, com o objetivo de ser reeleita, pesa até hoje sobre os ombros do país em forma de inflação, recessão, desemprego e dívida pública crescente.

A ruína econômica

A coluna de Míriam Leitão no Globo, 6/4/2016. Com Álvaro Gribel

A presidente Dilma Rousseff arruinou a economia brasileira. O Congresso e a Justiça podem decidir que isso não é motivo para impeachment, mas é um fato que o país deve olhar para se proteger no futuro de decisões tão perigosas. E agora, para lutar contra o seu afastamento, Dilma está afundando ainda mais o país, chutando o balde fiscal e escancarando a feira dos cargos públicos.

A tabela deixa claro o quadro econômico que ela recebeu e o que temos agora depois de cinco anos de Dilma. A inflação deu um salto, a dívida bruta subiu 16 pontos percentuais do PIB, o superávit primário virou déficit, o déficit nominal escalou, o PIB, que estava positivo, despencou. Confira os números. No crescimento de 2010, é preciso ponderar que os 7,5% foram um exagero criado pela bolha feita pelo ex-presidente Lula para eleger sua sucessora. Mesmo descontando-se uma parte dessa alta, é chocante o buraco em que a economia caiu: dois anos consecutivos de encolhimento em torno de 4%. No desemprego medido pela PNAD Contínua, não há dados anteriores a março de 2012, mas os números mostram a deterioração. Nesse período, em torno de dois milhões de pessoas entraram no grupo dos desempregados.

O que explica uma desorganização tão forte não é a crise internacional, sobre a qual ela falou tanto na época da campanha. O mundo sempre será uma fonte de instabilidade, mas o tempo da crise aguda foi a que estourou em 2008 com a quebra do banco Lehman Brothers. No período Dilma, houve a piora da crise da Europa, e a continuação da desaceleração chinesa, fatos que não explicam o péssimo desempenho da economia brasileira. No atual governo, o país perdeu o grau de investimento por todas as agências e na Standard&Poor’s caiu 3 níveis na classificação de risco.

No Parlamentarismo, uma situação como a mostrada neste quadro seria o suficiente para uma moção de desconfiança, mas, no presidencialismo, que o Brasil escolheu democraticamente, o mandato é muito protegido, como disse o advogado-geral da União. É tão protegido que se a soma dos que votarem a favor de Dilma, os que faltarem, os que se abstiverem chegar a 171 deputados, esse pedido de impeachment está encerrado.

A manipulação de preços de energia por razões eleitorais levou à correção que elevou a inflação. As pedaladas foram feitas para aumentar gastos em ano eleitoral. Os bancos públicos pagaram despesas do governo e ele aumentou gastos em outras áreas. Os déficits elevaram a dívida pública. Tudo isso junto produziu a crise de confiança na economia que afastou investidores e levou o país a perder o grau de investimento. Foram cometidos inúmeros erros como o de elevar a dívida em R$ 500 bilhões, emitindo títulos, que foram transferidos para o BNDES para os empréstimos subsidiados às grandes empresas.

Há problemas herdados de Lula, outros criados durante o governo Dilma, mas houve um aumento de decisões perigosas ao fim do primeiro mandato para aumentar as chances de reeleição. E este é outro ponto sobre o qual o país tem que pensar para aperfeiçoar a democracia brasileira. O trecho da Constituição a que o governo se agarra é “O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”. Foi escrito antes da existência da reeleição. Se significar que ela não tem responsabilidade pelo que fez em 2014, o país está exposto a todos os riscos, porque basta chutar o balde no último ano de governo para ter mais um mandato. A reeleição fica sendo uma anistia e fica instituído o vale-tudo.

O valor da estabilidade

A coluna de Míriam Leitão no Globo, 7/4/2016. Com Álvaro Gribel

O que esse doloroso momento pode trazer para o país é a confirmação dos valores e princípios que levaram à Lei de Responsabilidade Fiscal e a todo o esforço para que as leis orçamentárias fossem levadas a sério. O relatório do deputado Jovair Arantes (PTB-GO), que viu indícios de crime de responsabilidade, lembra que a estabilidade não é uma questão menor.

Durante toda essa discussão, o que o governo sempre disse é que essa era uma pequena ilegalidade. Outras forças políticas, mesmo contrárias ao governo, lamentavam que o processo de impeachment estivesse sendo iniciado por uma questão tão “pequena” quanto esta. Descumprir o ordenamento fiscal, monetário e orçamentário do país, pilares da estabilidade tão duramente conquistada, não é um pecadilho, não é pequena irregularidade, é um atentado à ordem econômica do país.

O que o relatório acolhe é esta ideia central do valor da estabilidade. O curioso é que 2015 foi o ano em que se tentou desfazer o que foi prática corrente durante o primeiro mandato. O então secretário do Tesouro Arno Augustin, escolha pessoal da presidente da República, e o então ministro da Fazenda Guido Mantega, que ela herdou do ex-presidente Lula, fizeram tábula rasa das leis fiscais do país: maquiaram as contas, manipularam dados, esconderam déficits. Eles se sentiam tão à vontade, com a concordância da presidente da República às suas práticas, que foram além no que ficou conhecido como “pedaladas fiscais”.

O deputado Jovair Arantes vai ao cerne da questão quando diz que a proibição de o governo contrair empréstimos junto a bancos públicos foi uma das principais medidas da Lei de Responsabilidade Fiscal e por isso essa questão não pode ser considerada como menor. De fato, quem viu a lei nascer, como forma de acabar com os abusos de governantes que quebravam os bancos e deixavam a bomba estourar nas mãos dos sucessores, sabe exatamente que esse é um ponto central.

Durante o ano de 2015, em um encontro no Ministério da Fazenda, ouvi de uma autoridade: “aqui estamos despedalando.” Mesmo assim, as dívidas cresceram, e a prática, apesar de reduzida, permaneceu. Isso elevou o passivo. Mas, correto mesmo, era considerar-se as pedaladas de 2014. Ele teve que ficar nas de 2015, de menor intensidade, porque foi isso que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, recebeu como denúncia. E essa limitação temporal acaba favorecendo a presidente da República em sua luta para manter o mandato.

Seja o que for que aconteça daqui por diante, é forçoso reconhecer os passos dados no enforcement, ou seja, na força para fazer cumprir a lei fiscal. O TCU recomendou a rejeição das contas por essas manobras e agora o relator da Comissão do Impeachment vê indícios de crime de responsabilidade. É o país que avança.

“A preocupação com o equilíbrio fiscal está longe de constituir mera tecnicalidade”, diz o relator e explicou que isso é parte integrante da democracia porque a população tem o direito de escolher projetos distintos para governar os destinos do país. Se um governo desmonta as bases da estabilidade, compromete a administração seguinte. Esta é a ideia: um governo não pode quebrar o Estado para se eternizar no poder ou jogar para o sucessor bombas fiscais de efeito retardado.

Os valores “exorbitantes” que ficaram a descoberto junto aos bancos públicos, explica o relator, “evidenciam que a União, sob o comando da denunciada, transformou em regra o que deveria ser absolutamente excepcional”. O destino do relatório será decidido pelos membros da Comissão, mas ele acolheu exatamente o que é fundamental em toda essa discussão.

Retórica singela

Editorial do Estadão, 6/4/2016.

A defesa da presidente Dilma Rousseff no processo de impeachment que tramita no Congresso Nacional, feita pelo advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, foi uma singela peça de retórica. Como tal, justiça seja feita, foi competente. Esvaziada, porém, das bem articuladas frases de efeito e da profusão de adjetivos escandidos com ênfase pelo orador, o discurso do ex-ministro da Justiça não para em pé, porque, apesar dos sofismas expostos com aparente convicção, falece ao tratar do mérito das acusações: as ilicitudes representadas pelas pedaladas fiscais e a concessão de créditos suplementares sem autorização do Congresso.

Para Cardozo, as “indevidamente” chamadas pedaladas fiscais não podem ser consideradas operações de crédito do governo com os bancos oficiais – o que a lei proíbe – porque foram apenas “atrasos” no repasse às instituições financeiras dos recursos que elas foram obrigadas a adiantar para honrar os compromissos do governo como os pagamentos de programas sociais. Entende o advogado-geral que Dilma fez apenas o que “todo mundo fez”, referindo-se a ex-presidentes e governadores, e além disso “não houve má-fé”, ou dolo, porque a presidente se limitou a assinar medidas apresentadas por seus subordinados, no caso, o ministro da Fazenda e o secretário do Tesouro. Isso quer dizer que Dilma não tinha a menor ideia daquilo que estava assinando?

Quanto aos créditos não autorizados, Cardozo tentou desqualificar a acusação sugerindo que os acusadores cometem o equívoco de confundir política orçamentária com política fiscal, como se não houvesse estreita relação de causa e efeito entre uma coisa e outra. Esses créditos não representariam gastos extras no Orçamento, mas apenas a “realocação de recursos públicos”, no caso, modestos R$ 2,5 bilhões. Pois foi por ter irresponsavelmente descumprido todos os orçamentos na tentativa de implementar medidas populistas e eleitoreiras que o governo Dilma negligenciou o necessário controle fiscal, o que contribuiu decisivamente para comprometer a credibilidade do governo e afundar o País na crise econômica.

Mesmo quando anunciou que passaria a tratar do mérito das acusações para rebatê-las com argumentos legais, Cardozo manteve o tom essencialmente político de seu discurso, afirmando que nada do que é apresentado contra Dilma é suficientemente grave para embasar o pedido de impeachment.

Aliás, entende o advogado-geral que o processo de impeachment é “nulo de pleno direito”, porque foi admitido pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, numa clara atitude de retaliação à presidente da República pelo fato de ela ter-se recusado a forçar os três deputados petistas a defendê-lo na Comissão de Ética da acusação de quebra de decoro parlamentar que pode custar-lhe o mandato. Ora, diz a lei que cumpre ao presidente da Câmara dar seguimento aos pedidos de impeachment que atendem aos requisitos legais e rejeitar os demais. A lei não trata dos sentimentos que possam transitar nos ventrículos do indigitado presidente, como parece querer o imaginoso defensor.

Para Cardozo, as centenas de páginas da peça acusatória que pede o impeachment de Dilma são completamente irrelevantes, com argumentos insuficientemente graves para justificar uma punição que só pode existir em situação de “absoluta excepcionalidade institucional”, na qual fiquem claramente configurados má-fé e dolo num “atentado” à Constituição. Nessa linha de argumentação, a generalização da corrupção na gestão pública e o fracasso político e econômico do governo Dilma – fatos públicos e notórios que, por esse motivo, não carecem de comprovação documental e dispensam a especificação de dispositivos legais infringidos – podem perfeitamente configurar, num julgamento político como o que cabe ao Parlamento levar a efeito, a situação de “excepcionalidade institucional” que para a maioria absoluta dos brasileiros só se resolverá com o afastamento da presidente da República.

Cardozo sustenta que um governo “que nasça de um processo de impeachment” “não terá estabilidade, não terá condições democráticas de reunir as energias necessárias para que o País possa sair desta crise”. Isso, dito nesta altura dos acontecimentos, é mero exercício de adivinhação. Certeza mesmo é que o governo Dilma não tem as condições mínimas para tirar o País da crise em que o meteu.

O consistente relatório da comissão do impeachment

Editorial de O Globo, 8/4/2016.

Primeiro passo objetivo no processo de impeachment em tramitação contra a presidente Dilma, o relatório do deputado Jovair Arantes (PTB-GO), a favor do impedimento, é peça consistente e aborda manobras ilegais que provocaram graves danos à estabilidade fiscal do país, causa da séria crise econômica atual, e ainda em fase de agravamento.

O deputado, cujo trabalho será submetido à comissão especial do impeachment, centrou o foco nas pedaladas — atraso proposital de repasses do Tesouro a instituições financeiras públicas, para maquiar o saldo fiscal — e na abertura de créditos suplementares por decretos presidenciais, sem a aprovação do Congresso. Fatos que justificam o impeachment, por serem crimes de responsabilidade em malversações orçamentárias — com o que não concorda o Planalto.

As pedaladas referem-se a somas bilionárias. E o problema não está no atraso em si no ressarcimento à Caixa Econômica, ao Banco do Brasil e ao BNDES pelo pagamento adiantado que fizeram em programas sociais, como o Bolsa Família. No caso do BNDES, trata-se do subsídio no crédito distribuído pelo banco. Até o FGTS foi usado neste artifício pelo Tesouro.

Candidamente qualificadas pela defesa da presidente como flutuações normais de caixa neste tipo de operação, as pedaladas foram, na verdade, uma política de maquiagem do deficit público e um mecanismo pelo qual bancos oficiais financiaram o Tesouro, algo proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Quando elas eram de fato flutuações, entre 2001 e 2008, segundo a “Folha de S.Paulo”, oscilaram entre 0,03% do PIB e 0,11%. Começaram a crescer no segundo mandato de Lula e dispararam com Dilma no Planalto, em que a presidente teve a companhia do secretário do Tesouro Arno Augustin — considerado o mago da “contabilidade criativa”. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, superior hierárquico de Augustin, foi um sócio óbvio no desmonte da estabilidade fiscal. Assim, as pedaladas chegaram às alturas de 1% do PIB.

Tudo na política e no Direito se discute. O governo já se prepara para contestar no Supremo o relatório, se aprovado, alegando, por exemplo, que ele teria fugido ao escopo da denúncia, limitada a 2015. O que também é passível de discussão, pois a limitação de se condenar presidente apenas por ato cometido durante o mandato foi estabelecida antes de instituída a reeleição. Admitir esta regra como irretocável significaria permitir, de forma implícita, que o governante fizesse “o diabo” com as finanças públicas no primeiro mandato para se reeleger, pois teria a certeza da impunidade.

Deverá haver muito debate político e jurídico sobre o enquadramento do desmonte do equilíbrio fiscal como crime de responsabilidade, para fins de impeachment. Mas o relatório à comissão especial é um retrato fiel da trajetória de Dilma até produzir o atual desastre econômico, político e social.

8/4/2016

6 Comentários para “Há as mentiras, os slogans. E há os argumentos”

  1. REPITA ISTO COMO MANTRA!
    “Como um sujeito que trabalhou 36 anos em redações, só posso dizer que tenho orgulho da independência da grande imprensa deste país, e do talento das pessoas que escreveram os textos reunidos aqui”.

  2. NOSSO MEDO.
    Uma certeza.
    Tudo indica que vai ter golpe sim.
    Algumas dúvidas.
    Vai ter marcha pela vitória?
    Poderei voltar a vestir vermelho?
    Uma promessa de derrotado.
    Minha luta é parra uma vida inteira!

  3. Vai ser um golpe muito legal, Miltinho e Nosso Medo. Milhões de pessoas estarão nas ruas torcendo a favor. E uns gatos pingados podendo se manifestar livremente contra. Um golpe com duas cerimônias bonitas, uma na Câmara e outra no Senado, a última presidida pelo Presidente do Supremo Tribunal de Federal Lembram-se do golpe no Collor? Claro que vocês se lembram.E, como dois sujeitos coerentes, só podem ter sido coloridamente contra. É o unico tipo de golpe no mundo que só acontecerá se todos os preceitos da Constituição e as diretrizes do STF forem cumpridos. O emocionante é que ainda poderá ser evitado se o governo conseguir uma mixaria de 172 votos,ou a oposição não alcançar 342. Único golpe com segundo tempo, exigirá depois uma grande maioria no Senado. Vocês deveria escrever uma carta para Dilma, Miltinho e Nosso Medo. Expliquem para ela que a Constituição tem dois remédios batutas para os golpes de verdade. Em vez de ir para o chuveiro no intervalo para o segundo tempo, ela poderá declarar Estado de Defesa ou Estado de Sítio, recursos das democracias contra essas violências. Funciona muito mais do que montar uma claque diariamente no Planalto para gritar que não vai haver golpe. É certo que vocês vão ter que explicar umas três vezes até ela entender. Mas conto com a paciência patriótica dos dois.

  4. Só mais uma recomendação, Miltinho e Nosso Medo: a gente aqui em Brasília conhece bem o temperamento e a capacidade intelectual da Presidenta. É melhor mandar a carta do que ir lá pessoalmente. Não se encantem com a possibilidade de participar daquela claque. Se ela achar que Estado de Sítio é alguma ironia com Lula, Atibaia e pedalinhos, pode querer dar porrada em vocês dois.

  5. Nosso medo é o dia seguinte ao golpe.
    Quixotescamente gostaria de enfrentar os golpistas de agora a bordo de um passat vermelho.

  6. Aconteceu no dia 19 de março, dia dedicado à São José, padroeiro das famílias, em São Paulo, com uma participação de 500 mil pessoas, organizado pela Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), da União Cívica Feminina, da Fraterna Amizade Urbana e Rural, entre outros grupos. Na ocasião, foi distribuído o Manifesto ao povo do Brasil, pedindo o afastamento do presidente João Goulart. Em 31 de março veio a “revolução” muito mais tarde transformada em golpe.

    Em 02 de abril, a “Marcha da Vitória” aconteceu no Rio de Janeiro, com um milhão de pessoas. Demoraram 24 anos para entenderem o erro.

    Decorridos outros 24 anos chamam novo golpe de impeachment. Vai ser um golpe muito legal! Afirmam e milhões vão comemorar nas ruas!

    Mais 24 anos passarão e vão se arrepender como os “revolucionários de 64”.

    Hoje alguns vestem a carapuça de golpista e incitam ao Estado de Defesa e Estado de Sítio numa tentativa odiosa de subversão à ordem e adoção ao regime de exceção como forma de remediar e justificar seu golpismo.

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