Não conheço nenhum americano que beba Pernod. Só ele, já velho, para desenjoar do mar de whisky e tequila em que passara anos a boiar. Apresento-vos Robert Mitchum, um rio tranquilo. Talvez, por isso, podia beber sem limites. O realizador Sydney Pollack diz que Bob bebia o dia todo sem que o nível de consciência e comportamento se alterasse.
Menino bem-nascido, nasceu cansado. E era esse o segredo das personagens a que vendeu o corpo: homens robustos, sólidos como armários, mas cansados, cansados demais para esconder que o atormentavam mais coisas do que deixavam transparecer as palavras lentas e os gestos, quase a roçar a imobilidade.
De Out of the Past a Angel Face, percebe-se que a emoção de Mitchum é uma emoção ferida. Se lhe dissessem que era inexpressivo, não negaria, mas defendia-se com uma teoria encavalitada no zen: “Olhem, tenho três expressões, olhar para a esquerda, olhar para a direita e olhar em frente.”
Tinha um metro e oitenta de falsa timidez, cabelos escuros e olhos azuis. Não ia ter com as mulheres porque as mulheres vinham ter com ele, mas fez para a vida um casamento de alto lá com ele, 57 anos com a namorada de juventude, que por acaso roubou ao irmão. Em Farewell my lovely, Mitchum engata uma incendiária Charlotte Rampling. “My place?”, diz ele. “Para quê? Tens tudo o que precisamos contigo”, sossega-o ela. E sossego era com ele. É verdade que as mulheres lhe cheiravam a virilidade, mas uma delas homenageou-o com este epitáfio: “Caramba, era um homem, e no entanto portava-se como um ser civilizado.” Não consigo é explicar-vos a forma como essa mulher anónima pronunciava a palavra “homem”.
Deu-lhe rijo na canábis, foi preso, redimiu-se em pasmosos papéis de meter medo (Night of the Hunter) ou de desencadear a mais melancólica angústia (Lusty Men). E ainda teve tempo de descobrir, numa espelunca de Biloxi, no fundo Mississípi, um esganiçado chamado Elvis, a que ninguém ligava pevide e que ele revelou a um amigo empresário.
Dois anos antes de Mitchum morrer, em 1995, Jim Jarmusch dirigiu-o em Dead Man. Deram-se bem. Encontravam-se no estúdio, de manhã, e era sempre assim: “Como é que está hoje, Mr. Mitchum?”, perguntava Jarmusch. “Pior”, respondia o imenso, invariável e cansado actor.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Out of the Past no Brasil é Fuga ao Passado.
Angel Face, Alma em Pânico.
Farewell, My Lovely, O Último dos Valentões.
The Night of the Hunter, Mensageiro do Diabo.
The Lusty Men, Paixão de Bravo.