Vou já falar de bacalhau, mas começo com uma afirmação séria: a obra cinematográfica de Eisenstein fez-se sob o signo da encomenda. Os cineastas americanos do seu tempo, dos anos 20 aos 40, recebiam encomendas de produtores como Zukor, Thalberg, Jack Warner ou Samuel Goldwyn. Eisenstein trabalhou muito com um produtor chamado Josef Estaline.
O Couraçado Potemkin foi uma dessas encomendas oficiais. Era preciso comemorar a Revolução de 1905. Eisenstein começou por querer fazer um amplo fresco histórico, mas descobriu que não tinha meios, nem sol. Sabendo que brilhavam os últimos raios em Odessa, foi para lá e decidiu agarrar-se a um episódio forte, pondo nele toda a carga simbólica dessa revolução contra o czar. Numa escadaria de Odessa filmou então a longa cena, pungente e exaltante, do massacre popular cometido pela branca tropa do soberano.
Antes de ser o prodígio de montagem que é, foi um belo exercício de mise-en-scène. Eisenstein tinha de manter a multidão de figurantes animada, ágil, genuína. As horas passavam e, proletários ou pequeno-burgueses, os figurantes perdiam energia. Eisenstein usou um velho truque de Napoleão, a animar os seus soldados. Gritou lá de cima da escadaria: “Camarada Prokopenko, ponha-me mais músculo nisso!” Ele sabia que havia um Prokopenko, embora não fizesse ideia de quem seria. Mas um grito tão personalizado deu novas forças à multidão. Eisenstein via e sabia quem era cada um deles.
Não foi de Odessa e dessa sequência que se falou na visita do cineasta georgiano Otar Iosseliani à Cinemateca. Nem de Eisenstein, que ele não apreciava. Entrevistei-o em Paris e disse-me: “Tudo o que ele, Vertov e Pudovkin filmaram está infectado pelo fio vermelho da mentira. Eisenstein fazia sempre a apologia de Estaline e, no ‘Prado de Béjine’, faz a apologia da delação.”
O João Bénard levou-o a jantar e, sem polémicas, prometeu-lhe o melhor bacalhau à Gomes de Sá do mundo. O do Farta Brutos. Céptico e pouco dado a cortesias, Iosseliani torceu o nariz. “Já comi um muito melhor em Moscovo”, disse ele, provocatório. O João virou-se para a Maria João e para a Antónia e esteve-se nas tintas para que ele percebesse ou não: “Olha-me este. Nem o Cunhal tinha lata para dizer uma coisa destas.”
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Otar Iosseliani, também conhecido como Grande Otar, disse a frase “(…) infectado pelo fio vermelho da mentira”.
Se opinador sensato, certamente referia-se a mentiras estatais – e não “vermelhas”.
Exemplo de mentira estatal: há um grande Estado no mundo, o Estado de Wall Street, com capital em Nasdaq City. Este Estado, em seus filmes publicitários, refere-se ao Hitler como um psicótico criminoso – sem citar os campos de extermínio alemães na Rodésia (atual Namíbia), que exterminavam negros “inferiores” no século XIX, quando o Adolfinho tinha uns quinze anos, ainda na época do kaiser Wilhelm II.
O governante não era o Hitler, mas o querido kaiser, que virou até nome de produto aqui no Brasil. Não era visto como psicótico, porque afinal as vítimas eram negros, e não judeus.
Outro exemplo: filmes que citam o Fidel, Saddam etc., sem ater-se a leis de exceção de dentro dos EUA (o “Patriot Act” do Bush, as leis de segregação em Mississipi).
A mídia consegue tudo. O Goebbels que o diga.