Meu amor, ela fala como o silêncio, / Sem ideais ou violência. / Não tem que dizer que é fiel / Embora seja verdadeira como o gelo, como o fogo. / As pessoas levam rosas, / Fazem promessas. / Meu amor, ela ri como as flores. / Presentes não conseguem comprá-la.
Tocou no iPod “Love Minus Zero/No Limit”, em alguma hora do dia, e, pela décima bilionésima vez na vida, me derreti diante desses versos loucos, maravilhosos, às vezes simples demais, às vezes torturantemente estranhos.
O décima bilionésima vez não é força de expressão. Devo seguramente ter ouvido “Love Minus Zero/No Limit” mais ou menos isso aí. Afinal, convivo com ela há exatos 50 anos – meio século! A canção está no disco de Bob Dylan de 1965, o Bringing it all back home, o quinto que o cara lançou, o primeiro em que havia guitarra elétrica – e que eu comecei a ouvir em 1966, no primeiro dos meus dois anos de Curitiba, a fria.
Já estava em São Paulo quando, em 1968, Joan Baez lançou o álbum duplo Any Day Now, só com músicas de Dylan, a capa, quer dizer, as quatro capas todas ocupadas por desenhos dela mesma, desenhos de traço bem infantil. A versão dela para a canção declaração de amor do homem que ela tinha amado demais é extraordinária.
“Love Minus Zero/No Limit” é uma canção alegre.
Bob Dylan deve ter feito, no meio de suas, sei lá, 500, 700 composições, umas dez, talvez até mesmo 15 canções verdadeiramente alegres. “Love Minus Zero/No Limit” é uma delas, e a sua gravação original, no Bringing it all back home, mostra isso. A voz dele está contente, cheia, pra cima, livre leve solta.
Mas a gravação de Joan Baez é ainda mais alegre. O disco duplo Any Day Now foi feito com músicos de Nashville, gente do country – são 11 instrumentistas, chequei agora no disco -, e então o som é forte, energético, pra cima.
(Aqui, a versão de Joan Baez. Aqui, uma bem mais recente, de Eliza Gilkyson. E a de Judy Collins, aqui.)
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A força com que os versos opõem a amada do poeta à maioria das pessoas me parece absolutamente extraordinária.
As pessoas se esforçam, brigam, lutam para fazer a diferença – a amada plaina, suave, sem esforço algum.
Me assombra especialmente a justaposição que ele propõe entre as pessoas e a sua amada nos versos
In the dime stores and bus stations
People talk of situations
Read books, repeat quotations
Draw conclusions on the wall
Some speak of the future
My love she speaks softly
Nas lojas e nos pontos de ônibus, / As pessoas discutem sobre os problemas, / Lêem livros, repetem citações, / Desenham conclusões no muro. Algumas falam do futuro. / Meu amor, ela fala macio.
Bob Dylan, o artista que era tido como o porta-voz, o profeta de sua geração, o que trazia à baila os temas sociais, as questões políticas, aqui dá a entender que entre as pichações políticas nos muros e a fala suave da mulher, o melhor mesmo é, sem dúvida alguma, a vida pessoal.
Some speak of the future / My love she speaks softly
Ah, mas puta que o pariu! É bonito demais! É um achado, uma pérola!
Sem contar com o fato de que o título da canção já é um poema em si mesmo. É belo e óbvio e simples e complicado e complexo e difícil mais ou menos como tudo na vida: “Love Minus Zero/No Limit”. Amor menos zero – limite algum.
John Lennon, que babava com as letras de Bob Dylan, cunharia dois anos depois o mantra maravilhoso que a rigor quer dizer a mesma coisa, a mesma verdade básica: All you need is love.
Agora, o que raios significam o punhal e a adaga, as velas das madames, a ponte que treme, as sobrinhas dos banqueiros de que fala também a letra, isso eu jamais vou saber. Dylanices. Dylan tem seu lado felliniano.
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Alguns anos depois, em 1979, Georges Moustaki, outro dos meus maiores ídolos, fez um poema em uma canção que, para mim, tem o mesmo tom de “Love Minus Zero/No Limit”. É uma declaração de amor a uma mulher especial – assim como era a amada do poeta que escreve em inglês.
A canção se chama “Elle est elle”, e, como faz em várias outras, Moustaki – que, em “Je suis um autre”, se define como um patriarca noviço, beatnik envelhecido, viajante imóvel, otimista amargo, pessimista alegre – abusa das idéias antônimas, antípodas.
Eis o que dizem alguns versos:
Ela é dócil, ela é rebelde, / Ela é mutável / E eterna. / Ela é blue-jeans, / Ela é feita de renda. / Ela é fugaz / Ela é fiel / Ela é Mozart / Ela é Ravel / Ela é o passado, ela é o futuro. /Ela é o porto e a aventura.
E aí repito o ah, mas puta que o pariu: Elle é jadis, ele est futur, elle est le havre et l’aventure é bonito demais!
Como Dylan, Moustaki é um autor de canções em geral sérias, às vezes melancólicas, tristes. Como Dylan, Moustaki não tem assim muitas canções abertamente alegres. “Elle est elle” é uma das mais alegres de todas as suas composições.
(Aqui, a versão original, gravada em estúdio, por Moustaki e Pia, sua única filha – só que com fotos e a letra em espanhol. Aqui, pai e filha cantam a música num programa de TV.)
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Me ocorreu, enquanto pensava em escrever umas linhas sobre “Love Minus Zero/No Limit”, que tocou hoje no shuffle do iPod, que não apenas a canção de Dylan tem tudo a ver com a canção de Moustaki, como as duas canções parecem ter sido escritas para Mary Zaidan.
No momento em que Bob Dylan fez “Love Minus Zero/No Limit”, no momento em que Georges Moustaki fez “Elle est elle”, eles estavam apaixonados por uma mulher que nem a minha.
Uma mulher fodinha. Uma mulher porreta. Le havre et l’aventure.
23 de julho de 2016
Love minus zero/No limit
Bob Dylan
My love she speaks like silence
Without ideals or violence
She doesn’t have to say she’s faithful
Yet she’s true, like ice, like fire
People carry roses
Make promises by the hours
My love she laughs like the flowers
Valentines can’t buy herIn the dime stores and bus stations
People talk of situations
Read books, repeat quotations
Draw conclusions on the wall
Some speak of the future
My love she speaks softly
She knows there’s no success like failure
And that failure’s no success at allThe cloak and dagger dangles
Madams light the candles
In ceremonies of the horsemen
Even the pawn must hold a grudge
Statues made of matchsticks
Crumble into one another
My love winks, she does not bother
She knows too much to argue or to judgeThe bridge at midnight trembles
The country doctor rambles
Bankers’ nieces seek perfection
Expecting all the gifts that wise men bring
The wind howls like a hammer
The night blows cold and rainy
My love she’s like some raven
At my window with a broken wingAqui, uma tradução feiosa, canhestra:
Meu amor, ela fala como o silêncio, / Sem ideais ou violência. / Não tem que dizer que fiel, / Embora seja verdadeira como o gelo, como o fogo. / As pessoas levam rosas, / Fazem promessas. / Meu amor, ela ri como as flores. / Presentes não conseguem comprá-la. / Nas lojas e nos pontos de ônibus / As pessoas discutem sobre os problemas, Lêem livros, repetem citações, / Desenham conclusões no muro. / Algumas falam do futuro. Meu amor, ela fala macio. / Ela sabe que não há sucesso como o fracasso / E o fracasso não é sucesso de jeito nenhum. O punhal e a adega fascinam, / Madames acendem as velas / Em cerimônias dos cavaleiros. / Até mesmo o peão tem que ficar ressentido. / Estátuas feitas de palitos de fósforo / Desabam umas sobre as outras. Meu amor, ela pisca, ela não se incomoda. / Ela sabe demais para discutir ou julgar. A ponte treme à meia-noite, / O médico do campo vagueia. / As sobrinhas dos banqueiros buscam a perfeição / À espera dos presentes que os sábios trarão. / O vento uiva como um martelo, / A noite uiva fria e chuvosa. / Meu amor, ela é como algum corvo / Na minha janela, com uma asa quebrada.
Elle est elle
Georges Moustaki
Elle est docile
Elle est rebelle
Elle est changeante
Et éternelle
Elle est blue-jean
Elle est dentelle
Elle est vestale
Elle est charnelle
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est gamine
Elle est femelle
Elle est fugace
Elle est fidèle
Elle est Mozart
Elle est Ravel
Elle est passion
Elle est pastel
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est jadis, elle est futur
Elle est le havre et l’aventure
Elle est le musc et la lavande
Elle est l’Espagne, elle est l’Irlande
Elle est consonne
Elle est voyelle
Elle est l’orage
Et l’arc-en-ciel
Elle est guitare
Et violoncelle
Elle est tigresse
Elle est gazelle
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est jadis, elle est futur
Elle est le havre et l’aventure
Elle est le musc et la lavande
Elle est l’Espagne, elle est l’Irlande
Elle est piment
Elle est cannelle
Elle est la poudre
Et l’étincelle
Elle est docile
Elle est rebelle
Elle est changeante
Et éternelle
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
Elle est, elle est, elle est, elle est, elle est
/A ponte treme à meia-noite,
/ O médico do campo vagueia.
/As sobrinhas dos banqueiros buscam a perfeição
/ À espera dos presentes que os sábios trarão.
/ O vento uiva como um martelo,
/ A noite uiva fria e chuvosa.
/ Meu amor, ele é como algum corvo
/ Na minha janela, com uma asa quebrada
Dylan ao falar de amor não deixa de lado seu senso crítico, ativista à esquerda. Sua voz é uma lástima, as gravações de Judy Collins é melhor, sem falar na do trabalho de Rod Stuart com voz inconfundível que me faz sonhar com a gravação de Amy Winehouse. Além de Joan Baez maravilhosa, inquestionável e irrepreensível diva de Suplicy.
Sérgio sabe e entende de cinema, música e amor. Imbatível nestas praias deveria deixar economia e política para a Mary.
Também maravilhosa, irrepreensível e inquestionável a declaração reverencial de amor à sua diva Mary.
Moustaki à parte é só um complemento.