Anélio foi foca, logo depois repórter, copydesk, subeditor, editor, editor-executivo, editor-chefe, chefe de jornalismo. Fez a carreira toda, do iniciozinho, do zero, até o topo, no Jornal da Tarde. Já no topo, esteve na revista Afinal, na Rádio Eldorado, e finalmente no Estadão. Mas nunca deixou de ser repórter.
Era sua paixão, seu vício: reportar o que observava, contar a história.
Continuou a escrever reportagens mesmo depois de aposentado – deixou o cargo de editor-executivo do Estadão em 2009, para merecidíssimo descanso, mas volta e meia tinha uma idéia de pauta e escrevia uma reportagem. Nos últimos anos, passou a oferecer seus textos para o concorrente direto do grupo em que trabalhou por mais de 35 anos – a Folha de S. Paulo. Não se importava com remuneração – apenas tinha necessidade de escrever.
Repórter bom é assim.
Em 2013, juntou algumas de suas melhores reportagens no livro Histórias que os jornais não contam mais, da Belaletra Editora, que dedicou a Lúcia, sua “mulher e maior incentivadora”, e à filha única, Patrícia.
No prefácio, seu grande amigo Sandro Vaia escreveu:
“Anélio foi um dos melhores repórteres que passaram pelo Jornal da Tarde na época em que ele revolucionou a imprensa brasileira. Uma das características dessa revolução foi o casamento que o jornal conseguiu fazer entre forma e conteúdo. Essa revolução consistiu em permitir e estimular que a linguagem gráfica com que se trabalhava a apresentação e o acabamento das reportagens fosse integrada à essencialidade do conteúdo e à própria forma em que o texto era elaborado. Um conceito de edição que até então não era usado nos jornais brasileiros.
“Esse conceito fez com que alguns dos melhores repórteres, como é o caso de Anélio Barreto, se transformassem em excelentes editores, pois conseguiam dominar ao mesmo tempo a linguagem escrita e a linguagem gráfica, de forma que elas funcionassem plenamente integradas e resultassem numa edição harmoniosa. Foi isso que fez do JT um jornal diferenciado, inteligente, instigante e revolucionário, uma verdadeira referência no jornalismo brasileiro nos anos 60 e 70.”
E mais adiante:
“As 14 reportagens reunidas neste livro, escolhidas pelo próprio Anélio, representam uma mostra extremamente significativa de sua produção da fase mais intensiva de sua vida de repórter. Claro que um bom e verdadeiro jornalista nunca deixa de ser repórter – sua essência é essa. Mas há circunstâncias que às vezes escapam de seu controle que o obrigam a empregar seu talento nas tarefas internas de uma redação. Foram essas circunstâncias que o transformaram em editor durante uma parte considerável de sua carreira, mantendo as mesmas qualidades que consagraram o repórter.
“Nesta antologia é possível avaliar a facilidade com que Anélio trafega entre assuntos tão diferentes e tão contrastantes de forma a imprimir a cada um deles o toque pessoal que dá sentido à estrutura do texto e provoca, ao final da leitura, a sensação de ter acabado de saborear, em forma de história, uma aventura humana de primeira grandeza.”
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O coração de Anélio parou de bater hoje.
Ao saber da notícia trágica, inesperada, Giuliana Vaia, que perdeu o pai há pouco, comentou na rede social: “O réveillon lá em cima vai ser animado este ano”.
Anélio e Sandro vão festejar juntos o campeonato do Palmeiras e o fim deste ano de tanta coisa ruim.
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Anélio pôde cheirar em vida o doce perfume do reconhecimento de seus pares – prazer que nem todos os bons jornalistas têm. Ficou extremamente feliz quando a Folha de S. Paulo publicou texto de Carlos Eduardo Lins e Silva a respeito de seu livro:
“Anélio Barreto foi, enquanto exerceu a profissão, um mestre na arte de garimpar dados e contar boas histórias. Integrou a equipe original do Jornal da Tarde, que, com a revista Realidade, fez nos anos 1960 e 1970 o melhor do novo jornalismo nacional. Seu talento fica claro na antologia, em especial nos textos do caso da rua Cuba, uma dessas histórias que poderiam render obras-primas como A Sangue Frio, de Truman Capote, mas que em geral saem apenas como notas mal escritas nos jornais.
“A série de reportagens sobre o caso que Anélio publicou no Jornal da Tarde entre 1989 e 1990 ocupa metade do livro e é seu ponto alto. (…) Os textos reconstituem em detalhes os momentos que antecederam o crime, do qual o filho Jorginho, 18, foi o maior suspeito (“Antes de sair, Ginho programou o videocassete, na sala, para gravar o ‘Globo Repórter’, que tinha um especial de fim de ano sobre os Trapalhões”) e avançam até um epílogo sobre o arquivamento do caso.
“Há outras histórias bem contadas: policiais (o caso O. J. Simpson), internacionais (a vida em Angola, em 1999), perfis (a mãe de Dilma Rousseff, em 2006) e mais. Todas aproximando a produção jornalística da literária, inclusive com liberdade para recriar diálogos não testemunhados sem, no entanto, perder a verossimilhança.”
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Os textos de Sandro Vaia e Carlos Eduardo Lins e Silva dão boa idéia da dimensão de Anélio Barreto como profissional. Quanto a isso, eu teria muito pouco, ou nada, a acrescentar.
Gostaria de registrar aqui só duas ou três coisas do Anélio que conheci bem de perto nos últimos 40 e tantos anos. 46, para ser exato.
Cheguei ao Jornal da Tarde dois anos depois que ele – ele começou em 1968, dois anos apenas depois do surgimento do novo jornal. Vinha do Banco do Brasil, emprego estável que trocou pelo desafio de começar de novo. Comecei em 1970, vindo do primeiro emprego com carteira assinada, dois anos e meio em empresa de importação e exportação. Cheguei como ele havia chegado, foca de tudo – mas quando comecei ele já era dos grandes copydesks da principal editoria do jornal, a de Reportagem Geral. Em dois anos, tinha passado de foca a um dos bons redatores do JT, tendo atravessado com rapidez de Usain Bolt a reportagem, sua grande paixão.
Trabalhei com Anélio como meu superior imediato durante uma boa parte dos meus mais de 35 anos de jornalismo – primeiro no JT, depois na revista Afinal, e depois de muita volta por aqui e ali, na redação do Estadão.
Fui seu amigo bem próximo durante quase este tempo todo, quatro décadas e meia. Em muitas coisas, éramos diferentes como água e azeite. Anélio sempre adorou mudar de casa: morou nuns dez endereços diferentes, ao longo deste tempo, enquanto eu permanecia sempre nos mesmos dois, a rigor três lugares. Por quatro décadas e meia, enquanto eu passava por três casamentos, no entanto, permanecia sempre, eternamente, junto da Lúcia.
Acho isso fascinante, engraçado. Visitei as muitas propriedades de Anélio e Lúcia com Suely, depois com Regina, e, nos últimos 26 anos, com Mary. Anélio e Lúcia discutiam bastante entre eles – mas jamais alguém seria capaz de imaginar que poderiam algum dia se separar. Não se separariam jamais – a não ser quando acontecesse de um dele partir. Uma vez, alguns anos atrás, não sei quando, ele me disse que temia ir antes dela: achava que ela não teria muito do jeito prático de tocar a vida sem ele. Creio – e Elói Gertel, que conviveu muito proximamente com Anélio ao longo dos últimos muitos anos, também crê – que nisso ele estava enganado, errado. Boas pessoas também se enganam, erram.
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Não era uma pessoa de muitos amigos. Muito antes ao contrário.
Não procurava ser simpático com as pessoas que acabava de ficar conhecendo. Estava pouquíssimo interessado em conquistar novas amizades.
Era extremamente fiel às amizades antigas.
Tinha ódios, raivas fortes, viscerais. Era um ser passional. Figadal.
É possível que tenha sofrido bastante por isso.
Os eventuais leitores de seus textos, no entanto, ganharam demais. O texto de Anélio Barreto era como ele – passional, forte, vibrante.
Jornalista que tem texto vibrante, e bom, e muito bom, é coisa cada mais coisa rara. Do tipo que mais faz falta.
A foto acima, de péssima qualidade, é um tanto histórica. Foi feita em 1984, no dia em que chegou às bancas uma nova revista semanal de informação, com um título esquisito, Afinal. Aí estão, na redação da revista – um prédio de seis andares na Rua Maria Antônia -, da esquerda para a direita, Sandro Vaia, editor-executivo, Pedro Cafardo, editor de Economia, Sérgio Vaz, editor de Geral, Gabriel Manzano, editor de Internacional, Esdra Guimarães do Carmo, chefe de produção, e, sentados, Anélio Barreto, editor-executivo, e Ari Schneider, secretário de redação.
Durante uns bons meses, fomos felizes e sabíamos, na redação da Afinal.
Giuliana Vaia desenterrou essa foto ruim e um tanto histórica para ilustrar um maravilhoso texto publicado um dia depois da morte de Anélio: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1320362661307929&set=a.185350671475806.46700.100000026221706&type=3&theater
Vaya con Diós, amigo e companheiro de lutas vãs (ou não?).
Belo texto, Servaz. Ainda sob choque, dá para notar. É o Anélio não era bem de fazer amigos. Ou ser um falso simpático. E isso não impede que se valorize o brilho que vinha de seus textos e das suas páginas obras de arte, sem dúvida, que jamais saíram do meu repertório iconográfico. Inesquecíveis. Como a da morte do John Wayne e milhares de outras, muitas em criação coletiva com outros dos brilhantes artistas do JT. Você, o Mitre, o Sandro. Ídolos para mim. Do apuro estético, da valorização dos textos. Será que essa nossa profissão faz mesmo mal para a saúde, como há tanto tempo se diz? E a gente ainda lamenta que ela está acabando. Mas está acabando para os ingratos. Para nós que a vivemos, sempre estará viva.
Estou com a Lúcia nesse momento e desejo o melhor a ela.
Muito obrigado, Claudia. Você aí foi muito generosa comigo – talvez mais do que eu mereço…
Um abraço!
Sérgio