Já devia estar preso há muito. Eu. Questões de off-shore. Falemos de tamanho. Há o tamanho da abundante sensualidade de Kathleen Turner em Body Heat. William Hurt toca-lhe e queima-se todo. Não é tamanho que se compare com o tamanho da ilegalidade que abrasa o meu passado.
Tive quase vinte anos de vida ilícita. Os meus Verões duravam nove meses. Iam de um ano ao outro, Verões coloniais, fora-da-lei. Este é dos singelos casos em que o Ministério do Ambiente e a Quercus se porão rapidamente de acordo, sem precisar de apresentar queixa em Bruxelas. Quem se lembrar do Do the Right Thing, de Spike Lee, filme em que o calor revolta os corpos, desencadeando batalhas de rua e pilhagens de mercearias de bairro, terá uma pálida ideia de que escaldões estou a falar.
Foram vinte anos de suor ardente: eu suava ao ar livre, numa hora, o que os reféns de Al Pacino suam atrás do balcão infecto no assalto ao banco em Dog Day Afternoon, filme de um tempo em que assaltos a bancos se faziam de fora para dentro.
Venho com esta conversa porque há, agora, senão mais um grão, pelo menos mais um grau Celsius de compreensão para o tema. Sem chegar ao calor nova-iorquino que leva Miss Torso a andar de soutien no apartamento de Rear Window, de Hitchcock, o Verão português aqueceu, garantem os climatologistas. Reparem, para mim, toda a “problemática do aquecimento global” está prejudicada pelos dados dos meus sentidos: depois de 20 anos nos trópicos, o que experimento, a viver em Portugal, é um arrefecimento global. O mundo ficou mais frio, digo eu, afirmação irresponsável e ultrajante, que me faz sentir culpado. Perdoem-me: vivi no calor sufocante de uma peça de Tennessee Williams, ainda antes de saber quem era Tennessee Williams
Se se pode chamar Inverno a isso, foram vinte Invernos de 20 a 24 graus Celsius. Ou seja, tive uma vida em off-shore climatérico, ilegalidade que teve de ser extirpada coercivamente. Movimentos de libertação e uma poderosa combinação geoestratégica, que envolveu os presidentes Brezhnev e Carter, acabaram-me com a papa doce. Foi, de repente, o meu último Verão. Tivesse feito a lobotomia que, em Suddenly Last Summer, Katharine Hepburn quer impor a Elizabeth Taylor e já não saberia, hoje, nada do tanto que fiz em vinte Verões e no último, interrompido Verão de 76/77.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Eis os títulos brasileiros:
Dog Day Afternoon – Um Dia de Cão;
Rear Window – Janela Indiscreta;