Eu não estava psicologicamente preparado para ver o espetáculo que é Bibi Ferreira canta Sinatra.
É de uma beleza, de uma grandeza, de uma emoção acachapantes, violentas.
Há momentos em que Bibi convida a platéia para cantar, e são lindos. Fora esses momentos, é óbvio que o público deve fazer absoluto silêncio, mas teve uma hora em que eu, que tento ser educado, em toda a vida mas em especial durante os shows, não consegui me conter e cantei (baixinho, bem baixinho, é verdade) junto com a grande dama. E em seguida marejei. Não sou um sujeito chorão – muito antes ao contrário. Nem mesmo quando minha mãe morreu chorei, embora depois tenha me cobrado muito pela lágrima não chorada.
Diante de Bibi Ferreira, dei uma choradinha.
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Comecei este texto de modo pessoal demais, e talvez errado, embora meus textos sejam sempre pessoais.
O lead, na verdade, é o seguinte:
No show de homenagem a Frank Sinatra e seu repertório, Bibi Ferreira, do alto de seus 92 anos de idade e 73 de profissão, faz um espetáculo maravilhoso, emocionante, sensacional. Se você tiver condições, compre ingressos, não deixe ver. Está agora em São Paulo, no Teatro Renaissance – estreou em 19 de setembro, tem tido casa cheia em todas as apresentações e ali fica até 30 de novembro. Em seguida vai percorrer o Brasil. Ter visto este show será uma marca na vida. Um diferencial para todo o sempre.
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Poderia ser um simples recital, com um pequeno conjunto, piano, baixo, bateria. Bibi quis muito mais: canta acompanhada por uma orquestra de 18 músicos – 10 nos instrumentos de sopro, 4 nas cordas, mais teclado, baixo, bateria e o maestro Flávio Mendes, que toca (bem) guitarra elétrica em algumas das 23 canções, apresentadas em exata uma hora de espetáculo.
Além de Bibi e dos 18 músicos, há uma vigésima pessoa no palco, uma espécie de apresentador, locutor, que, após a orquestra abrir com “Strangers in the night”, chama Bibi para o palco e, a partir daí, posta-se no canto direito, de onde lê, entre uma música e outra, um texto sobre Frank Sinatra e sua carreira. Ele é Nilson Raman, há 24 anos empresário da diretora, atriz e cantora.
Além do texto lido por ele, há, entre as canções, alguns comentários do maestro Flávio Mendes e da própria Bibi. Os três assinam o roteiro do espetáculo. Os casos contados pelo maestro e pela estrela são ótimos, deliciosos; o texto lido pelo empresário me pareceu muito inferior ao nível geral do show. E a própria figura de Nilson Raman como, digamos, mestre de cerimônias, faz este Bibi Ferreira canta repertório Sinatra, o nome oficial do espetáculo, roçar uma certa breguice.
Mas essas últimas observações são sobre pequeno, mínimo, ínfimo detalhe, que não tem importância alguma. A orquestra é ótima, as canções escolhidas, maravilhosas – e, meu, a voz de Bibi! Como diria uma conhecida minha, ah, fala sério, o que é que é aquilo?
Me lembrei de Nelson Gonçalves: Nelson era gago de tudo – mas, quando cantava, a voz era aquela coisa poderosa, forte, firme.
Bibi tem uma aparência um tanto frágil, aos 92 anos de idade. Embora fique de pé durante todo o espetáculo, caminha devagarinho, tem um aspecto, uma aparência de delicadeza absolutamente natural para a idade. Mas, quando canta – ah, o que que é aquilo? A voz da mulher é poderosa, forte, firme. Sobrepõe-se à orquestra, mesmo quando os saxofones estão a toda – paira sobranceira, majestosa.
Bibi canta com dicção perfeita. Pronuncia corretamente cada sílaba – exatamente como fazia o artista que ela homenageia.
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Bibi tem uma energia que parece inesgotável. O atual espetáculo deverá ser filmado para se transformar em DVD. Depois de dividir seu tempo com a direção de duas peças, nos próximos meses, ela pretende levar este Bibi canta Sinatra a Nova York e Las Vegas em meados de 2015.
Por que não? Nada demais para quem já cantou Amália Rodrigues em Lisboa e Edith Piaf em Paris.
No espetáculo que vimos (e imagino que seja assim em todas as apresentações), ela brincou com a própria idade duas vezes – uma delas antes de cantar “You Make Me Feel So Young” e outra ao contar uma história sensacional que eu desconhecia totalmente: “Dindi”, o grande clássico de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, é sobre Bibi!
“Aloysio de Oliveira, o autor da letra, estava muito apaixonado por mim naquela época, dois séculos atrás”, conta ela – e o maestro Flávio Mendes complementa: “Então, para não dar demais na vista, ele mudou Bibi pra Dindi”.
Leio sobre música há meio século (e aí não vai nada do exagero brincalhão de Bibi, mas o número exato de anos), escrevo sobre música há décadas, e nunca soube disso.
Uma outra história fascinante que Bibi conta é que, quando voltou ao Brasil, após a temporada americana, Carmen Miranda, em visita à casa de Procópio Ferreira, Aída Izquierdo e sua filha Bibi, queixou-se da forma com que parte da imprensa brasileira a tratava, como se ter ficado anos nos Estados Unidos fosse um crime de lesa-pátria. Bibi conta a história com a maior naturalidade, dizendo en passant que Carmen era muito amiga de sua mãe.
Bibi conta que sua mãe, a bailaria Aída, era argentina, e levou a filha várias vezes em viagens a Buenos Aires – razão pela qual a atriz e cantora conhece muito do tango e aprecia demais o gênero. (Em 2005, a Biscoito Fino lançou o CD Tango, de Bibi Ferreira e do pianista Miguel Proença.)
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Um momento fascinante do espetáculo é quando o texto lido pelo mestre de cerimônias lembra que, em meados dos anos 50, surgiu um poderoso rival do tipo de música que Frank Sinatra canta – e aí Bibi e orquestra atacam de “Rock Around the Clock”, o tremendo sucesso de Bill Halley que para muita gente foi o símbolo da chegada do rock’n’roll.
Bibi canta “Rock Around the Clock” pronunciando com perfeição cada sílaba da letra, coisa que é difícil e rara.
E aí – fantástico! – o público vem abaixo, se delicia, aplaude freneticamente ao final, mais do que aplaudiu “Night and Day”, “Nature Boy”, “Autumn Leaves”. Achei isso esquisito, curioso. Afinal, teoricamente, aquelas senhoras e aqueles senhores da platéia (vi bem poucos jovens ali, o que é absolutamente natural) são fãs da Grande Música Americana, Cole Porter, George & Ira Gershwin! Como diabos podem ao mesmo tempo ser fãs da Grande Música Americana e do rock, esse xerifão que quando sai às ruas expulsa delas o tango, o blues, o bolero, el mambo, la rumba, la guaracha, el joropo y el cha-cha-chá (para citar a deliciosa letra de “Cuando Duerme el Rock and Roll”, de Juan Manuel Serrat)?
É, Frank, o tempo andou mexendo com a gente, sim (para citar outra canção, desta vez de Belchior). El tiempo, el implacable, el que pasó (para citar Pablo Milanés), deixa hoje uma platéia de senhores e senhoras de mais de 60 anos de idade gostar da mesma forma de Cole Porter e Bill Halley and His Comets!
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Para mim – e creio que também para boa parte daquelas senhorinhas e senhorzinhos que estavam ao meu redor –, o momento mais emocionante deste espetáculo emocionante é a partir de quando o apresentador fala do encontro entre Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim – este é o título do disco de 1967, um dos mais belos de todos os que já foram feitos, na minha opinião.
“Dindi” havia sido apresentada mais cedo, entre “Someone To Light Up My Life”, versão de Gene Lees para “Se todos fossem iguais a você”, e “All the Way”.
Mas o encontro entre Francis Albert e Antônio Carlos Brasileiro, e o disco que fizeram juntos, é citado especificamente mais tarde, já bem perto do encerramento. Bibi Ferreira nos brinda então com as versões americanas de “Meditação (Meditation”), “Corcovado (Quiet Nights of Quiet Stars”) e “Água de Beber (Water to Drink”).
Foi aí que dei uma choradinha. É beleza demais, cantada por essa brasileira profissão esperança força alegria. Acho que a gente anda mesmo carecendo de ter orgulho de ser brasileiro.
Depois desses três clássicos de Antônio Carlos Brasileiro, o que mais poderia vir? Claro, só a canção que definiu Francis Albert, na letra criada por Paul Anka em cima de uma canção francesa meio brega. Ao terminar de cantar o verso “I did it my way”, nem era necessário, mas Bibi Ferreira acrescentou: “Eu fiz tudo do meu jeito”.
O bis é apenas um trechinho de “New York, New York” – e não é preciso mais nada. Enquanto o público aplaude de pé, Nilzon Raman faz merchadising explícito: ali na saída, diz ele, há uma lojinha em que estão à venda CDs e um DVD de Bibi.
Muitíssimo justo. Certíssimo.
Emocionados, embasbacados, fomos à lojinha.
Saí do teatro levando para casa um pouco de Bibi Ferreira e me sentindo envergonhado por só agora ter compreendido a grandeza dessa artista extraordinária.
19 e 20 de outubro de 2014
A foto é de Manuela Scarpa/Photo Rio News, a quem agradeço.
Eis a set list de Bibi Ferreira canta repertório Sinatra:
Strangers In The Night (Bert Kaempfert – Charles Singleton – Eddie Snyder)
Night And Day (Cole Porter)
Please (Ralth Rainger-Leorobin)
Ol’ Man River (Oscar Hammerstein Ii – Jerome Kern)
Nature Boy (Eden – Ahbez)
Autumn Leaves (Joseph Kosma – Johhny Mercer – Jacques Prévert)
Cheek To Cheek (Irving Berlin)
All Of Me (Gerald Marks – Seymour Simons)
Someone To Light Up My Life (A. C. Jobim – Vinicius De Moraes – Gene Lees)
Dindi (A. C. Jobim – Aloisio De Oliveira – Ray Gilbert)
All The Way (Sammy Cahn – Jimmy Van Heusen)
The Lady Is A Tramp (Lorenz Hart – Richard Rodgers)
I Get A Kick Out Of You (Cole Porter)
I’ve Got You Under My Skin (Cole Porter)
You Make Me Feel So Young (Mack Gordon – Josef Myron)
Rock Around The Clock (Bill Halley)
Fly Me To The Moon (Bart Howard)
That’s Life (Kelly Gordon – Dean Kay)
Meditation (A. C. Jobim – Newton Mendonça – Norman Gimbel)
Quiet Nights Of Quiet Stars (A. C. Jobim – Gene Lees)
Water To Drink (A. C. Jobim – Vinicius De Moraes – Norman Gimbel)
My Way (Paul Anka – Claude François – Jacques Revaux)
Bis: New York, New York (Fred Ebb – John Kander)
Não vou esperar,ainda posso comprar um ingresso.Vou a Sampa.
Caro Sérgio, me lembrei de uma matéria que li em 2013 sobre o sucesso de Bibi nos EUA.
Liza Minelli saiu da platéia e subiu enlouquecida ao palco do Lincoln Center para homenagear Bibi Ferreira. Declaracão de Liza: “Nunca em toda a minha vida vi alguém como você. E olha que já vi de tudo!” Está também no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=xUp4ccEuGuo
Oi, amigo SerVaz! Que texto extraordinário! Parabéns! Quem quase deu uma choradinha fui eu, que aliás, me emociono sempre que ouço Bibi. Vc já viu Bibi Canta e Conta Piaf? É maravilhoso e saiu também pela Biscoito Fino. Um abraço.
Bibi em ‘Gota d’ água’, o ponto máximo do teatro brasileiro. Texto, músicas, interpretação da Bibi, voz da Bibi, alma da Bibi. Ninguém igual a ela nos palcos brasileiros. Sou uma das felizardas que assistiram essa peça maravilhosa e que muito chorou no teatro.
Bibi Ferreira é sinônimo de Teatro Brasileiro.
Já havia lido este texto, mas hoje o reli, com muita saudades dela! Bibi se foi dia 13 de fevereiro! Foi brilhar num outro lugar! Deixar de brilhar, nunca deixará! Tive o privilégio que poucos tiveram, fui sua fã por 50 anos e sua amiga por pouco mais de uma década! Ela dizia que éramos amigas, achava meio pretensioso de minha parte concordar, mas jamais iria contrariá-la! Tenho por Bibi verdadeira loucura, adoração, devoção, admiração e profundo amor e carinho. Sou feliz porque consegui chegar perto dela, tão perto que lhe contei do meu amor e admiração! Escrevi algumas vezes pra ela e deve ter me achado uma maluca com as coisas que escrevi, mas percebeu a minha extrema sinceridade e meu amor sincero e puro! Bibi era e será sempre uma paixão, um encantamento! Sempre me achei tímida, mas diante dela perdia a timidez e falava o que sentia, do fundo do coração e da alma! Ela via em meus olhos a transparência do que dizia! Incrível como todas as fotos que tirei com ela tinham um brilho no olhar que não conseguia esconder! Eu tirei muitas fotos com ela, mas tirava porque eu própria as vezes duvidava se tudo não tinha sido apenas um sonho! Bibi fez parte da minha vida, faz parte dos meus sonhos e um dia nos reencontraremos, com certeza! Tanto amor não pode ser de uma só vida… Obrigada por sua luz, Bibi!