As lágrimas de Faces são as lágrimas da vida. Filmadas por John Cassavetes em 16mm e ampliadas para 35, são lágrimas cheias de grão, como o grão da vida que nos faz chorar no dia-a-dia. Filmadas à mão – qual tripé, qual dolly –, são lágrimas de Lynn Carlin, uma não actriz, que Cassavetes escolheu por ter os mesmos “olhos gordos” de Gena Rowlands.
John é uma lenda, um sopro de revolução estética (a única em que ainda acredito) que, nos anos 60, agitou Nova Iorque, provocando estragos em Hollywood. Fazia “filmes verdadeiros”, de dois tostões, que é, mais ou menos, o preço da verdade. A sua actriz era a mulher, Gena Rowlands, mas de grávida que estava, não podia, em Faces, ser a mulher da classe média que vive a crise afectiva que sempre fará da classe média uma classe em crise.
Cassavetes queria, então, fundar uma produtora com outro torturado rebelde, Robert Altman. Tinham um escritório em Hollywood e a secretária de Altman, a nossa Lynn Carlin das lágrimas futuras, dactilografava para Cassavetes o argumento de Faces. Nas horas mortas, porque nas horas vivas, Lynn embrulhara-se num affair que correu mal. Tentou suicidar-se. Altman não teve o humor do seu Mash: furioso por ver uns pulsos cortados, despediu-a. (Bem digo que o cinema não é como a vida!)
A sensibilidade nova-iorquina de Cassavetes explodiu. Com raiva redentora, contratou Lynn, não só para continuar a dactilografar, como para ser a mulher casada e suicida de Faces. Altman levou a peito a afronta: “John, ela nem para secretária serve, quanto mais para actriz.” Disseram-se alguns nomes que incluíam referências impróprias às respectivas mães, e não se falaram durante anos.
Já disse que as lágrimas de Lynn, em Faces, são verdadeiras. Numa das cenas, como ela não chorasse, Cassavetes disse ao actor que contracenava com ela, que lhe pespegasse, de surpresa, duas estaladas bem aviadas. Junto essas lágrimas ofendidas à terrível e dramática tosse da cena final, numas escadas submersas em cigarros, e percebo bem a nomeação para o Oscar que, rendida à verdade e a um par de lágrimas, a Academia lhe deu.
Um crítico escreveu: “Nunca mais esquecerei Lynn Carlin”. O zangado Robert Altman recortou a frase, colou-a na parede do escritório e acrescentou, por baixo: “E eu ainda menos.”
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
E se têm dúvidas da classe de Lynn Carlin, vejam-na aqui na conversa do que era então a conversa mais classe média nova-iorquina que se podia ter. Com mil subentendidos.