Saudades da Guerra Fria

zzmanuel

Se a semana pas­sada falei do Faces, de Cas­sa­ve­tes, do par de esta­los que ele man­dou um actor dar à pro­ta­go­nista para que ela cho­rasse, foi para hoje falar de Spi­el­berg. Nem sei se consta da bio­gra­fia, mas Spi­el­berg estava lá.

Não sei se no dia do par de esta­los, mas durante três sema­nas, nes­ses anos 60 em que a Guerra Fria estava a fer­ver, Spi­el­berg foi assis­tente ou mesmo moço de reca­dos no Faces de Cassavetes.

Terá sido durante as fil­ma­gens que rus­sos e ame­ri­ca­nos quase se esfo­la­ram por causa dos mís­seis que Khrush­chov camu­flou nas bar­bas de Fidel de Cas­tro? Dis­cu­ti­riam a troca de Powers e Abel de que agora fala A Ponte dos Espiões? As fil­ma­gens de Faces eram caó­ti­cas, total impro­viso, um desen­rasca que, se não fosse tão grego como Cas­sa­ve­tes, diría­mos que era um desen­rasca por­tu­guês. Se Spi­el­berg apren­deu aqui alguma coisa, então jurou dedi­car a vida a fazer tudo ao contrário.

Digo isto, por­que, feito maluco, me pus a ver os rolos de pelí­cula com os takes do making of de A Ponte dos Espiões. Sejam malu­cos como eu e expe­ri­men­tem. É uma delí­cia ver que Spi­el­berg é um rea­li­za­dor ace­le­rado, vai à câmara, desa­fia os acto­res, salta, corre e ri. Parece o miúdo feliz e exci­tado que vê da sua janela a vizi­nha da frente a despir-se.

O espanto é que não há ban­da­lheira nenhuma no pla­teau. A come­çar pela indu­men­tá­ria spi­el­ber­gui­ana. Se virem os rolos que eu vi – fil­ma­gens de Nova Ior­que, nos escri­tó­rios, tri­bu­nal e em casa do pro­ta­go­nista – vão ver um Spi­el­berg irre­pre­en­sí­vel, de fato e gra­vata, cami­sas a fazer pen­dant com o casaco, o colete ou um pulô­ver bordô, que vai com tudo. Na cabeça, umas vezes um cha­péu quase clás­sico, outras o boné da NYC Police Aviation.

Se isso tem alguma impor­tân­cia? Para mim, que sem­pre tive a par­voíce das for­ma­li­da­des (ou será a exi­gente ton­tice das for­mas?), tem a máxima impor­tân­cia. O aspecto de Spi­el­berg impregna o aspecto do filme. Na ati­tude dele com os téc­ni­cos, na forma de falar aos acto­res, ao estar­re­ce­dor Mark Rylance, a Tom Hanks, a Alan Alda, tudo se passa como se, mesmo no pla­teau, o mundo tivesse recu­ado ao final dos anos 50. É Spi­el­berg que ali está, mas podia ser o Mr. Hit­ch­cock de North by Northwest. Vi os rolos do making of e já vi o filme duas vezes: as sau­da­des que eu tive da Guerra Fria.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *